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Sinfonia de um homem comum

Minha formação, como de boa parte da minha geração, incluiu centenas de filmes americanos. Na real, nos inocentes filmes de bang-bang aprendíamos sobre a colonização do oeste americano. Conhecíamos mais os cheyennes do que os xavantes. Sabíamos mais de Touro Sentado do que qualquer outra liderança indígena brasileira. As histórias americanas desfilavam nas telas dos cinemas, contando a narrativa dos heróis, dos “bravos colonizadores” enfrentando as dificuldades com os inimigos dessa marcha para o oeste; os povos originários daquelas paragens. Os colonizadores avançavam com suas famílias em carroças que levavam a mudança definitiva e o espírito indômito dos desbravadores.

Nos embates onde o sangue jorrava fácil, os colonizadores brancos eram sempre salvos pela valente cavalaria que surgia do nada. Salvo engano, esse padrão de narrativa foi subvertido pela primeira vez por Arthur Penn no filme “Pequeno Grande homem” com o protagonismo sensacional de um centenário chefe indígena interpretado por Dustin Hoffman. Há tempos não revejo o filme que retrata o que ficou conhecido com a batalha de Little Big Horn.

O filme, narrado pelo velho cacique -magnificamente caracterizado por Hoffman- retrata o massacre de centenas de mulheres e crianças pela cavalaria americana comandada pelo famoso General Custer, até então entronizado no panteão dos heróis americanos. Digamos que a cavalaria americana, responsável pelo massacre, pelo menos nos filmes já não brilhava muito, mas claro que os filmes de bang-bang não foram os únicos a nos formar. Toda a gigantesca produção hollywoodiana caprichava promovendo o estilo de vida americano e as vitórias contra os maus, fossem eles os mexicanos -enquadrando aí todos os latinos- alienígenas marcianos, asiáticos ou outros que eventualmente mostrassem alguma diferença do americano médio.

Acho que foi por conta dessa solida formação, que mesmo sabendo das outras dezenas de invasões de tropas americanas no mundo real e o desejo de exportar o que eles consideravam democracia e que nada mais era do que o exercício de poder visando o controle de países e seus meios de produção, ainda resistimos a crer em barbaridades relatadas ao vivo.

Quando o embaixador José Mauricio Bustani veio à minha casa em 2002 e contou sua inacreditável saga até ser demitido da direção geral da OPAQ, – organização multilateral encarregada de proibir e fiscalizar o uso, a fabricação e mesmo a guarda de armas químicas – tenho de confessar, custei a acreditar em toda a narrativa. Principalmente nos trechos em que ele relatava a violência que tinha sofrido: entre outras a escuta clandestina montada na parede de seu escritório no prédio da organização sediada em Haia.

Em seguida tinha o relato da ameaça velada à integridade dos seus filhos caso não abdicasse da direção geral da organização. Na prática, como Bustani se negara a atender os desígnios dos embaixadores americanos, comandados por John Bolton, a profunda retaliação resultaria numa Assembleia Geral extraordinária inteiramente irregular com o propósito de demiti-lo. Nesses momentos, sua mulher, Janine, escutou conselhos para que Bustani evitasse tomar até a água servida nas dependências do imenso prédio da OPAQ na Haia.

Tudo isso porque o diretor geral José Bustani, com o propósito de ampliar o número de filiados à organização que dirigia, cumpria sua principal missão: alinhar o maior número de países à OPAQ, tornando-a cada vez mais representativa. E nesse momento, em seguida a ser reconduzido para mais uma gestão à frente da organização multilateral, a maior oposição dos americanos era exatamente à recente conquista a qual Bustani tinha se dedicado nos últimos meses. O Iraque era o alvo desse imenso desagrado. Era fato sabido pelos inspetores que conheciam os depósitos iraquianos que o país não possuía mais armas químicas -armas que já tinham usado na guerra com Irã e contra seu próprio povo, os curdos. Apesar desse notório conhecimento, expresso, entre tantos outros, por Scott Ritter, inspetor chefe da ONU, os EUA insistiam na presença dessas armas, como alegação para justificar a invasão do país. Bustani resistia à falácia e era o empecilho a ser removido.

Mas isso são tudo fatos e feitos atraentemente relatados no filme SINFONIA DE UM HOMEM COMUM. A verdade é que quando Bustani saiu do meu apartamento em Copacabana naquele dia de 2002, quase em estado de choque, fiquei pensando: não é possível, só gangsters, poderiam agir assim.

E mesmo assim, gangsters do cinema americano. Mas, em seguida fatos se sucederam de uma forma quase vertiginosa comprovando a narrativa de Bustani. Autoridades americanas plenas de credibilidade, como Colin Powell, contrariando pareceres técnicos afirmavam que haviam armas de destruição em massa no Iraque. Com Bustani já removido de suas funções, a OPAQ não era mais empecilho para a invasão. Em suma, tudo que ele havia previsto, acontecia. Toda a armação se comprovava e com a destruição do Iraque sob a alegação de que possuía armas químicas, entre civis e militares morreram mais de 300 mil iraquianos e milhares de soldados americanos.

Efetivamente, a sequencia dos acontecimentos, me despertava o desejo de fazer SINFONIA DE UM HOMEM COMUM. De início, seria um filme de ficção. Achava que com os fatos dramatizados teria mais liberdade narrativa e os episódios seriam melhor contados. Escrito o roteiro, assim que demos alguns passos para captar os recursos necessários, sentimos que os valores do orçamento poderiam ser captados, mas demandariam anos na função. Foi então que partimos para fazer um documentário, gênero de orçamento sempre menor. Tomaria meses de pesquisa, mas era mais acessível.

Em 2002 com sua recusa, Bustani desafiara um império. Sozinho. Apesar de funcionário internacional, sua nomeação contou com a promoção do governo brasileiro. Mas, cinco anos depois, as ameaças que sofreu não tiveram a solidariedade dos que o ajudaram a se eleger. Num pragmatismo feroz, o enfrentamento com os Estados Unidos recomendava que não era saudável esse embate e Bustani e foi demitido.

Para o filme, considerei que revelando o exímio pianista e músico apaixonado que era, ajudaria ao espectador de nossa história a se aproximar do Bustani como um “homem comum”. Aposentado e despido das credenciais de diplomata ficaria mais próximo de todos. Assim fizemos, costurando sua paixão pela música com a narrativa do episódio que se revelava ao longo dos 84 minutos de duração do filme.

Na real, somente no contato permanente com os personagens de um documentário vamos nos conhecendo melhor. Ao longo dos quatro anos que convivemos intensamente na realização de SINFONIA DE UM HOMEM COMUM, nós, a equipe do filme, nos perguntávamos sempre o que faríamos se sofrêssemos as pressões e ameaças semelhantes às que Bustani sustentou ao longo da gestão da OPAQ. Invariavelmente, nas muitas ocasiões em que nos colocávamos essas questões, a resposta era negativa. Entendíamos que alguém debaixo de tantas pressões poderia ceder. Mas acredito que Bustani tem uma cobrança interna muito forte com suas convicções. Ou, se ficar mais compreensível, podemos dizer que é um sujeito teimoso. Na abertura do nosso filme, o episódio com a escolha do piano no qual deveria se apresentar num concerto na Sala Cecilia Meirelles, ilustra bem sua personalidade.

Ao longo do extenso processo de elaboração do filme, não só se entende melhor o personagem que elegemos como protagonista, como passamos a compreender o universo onde ele circula.

No caso do SINFONIA, esse aprendizado foi imenso. Ao final do documentário, todos da equipe, não só passamos a admirar o Bustani como também a compreender a importância das organizações multilaterais na gestão dos conflitos geopolíticos. Ou pelo menos terminamos com essa sensação, diria que, semelhante à dos espectadores que mais tarde veriam nosso trabalho.

Na confecção de um documentário, ao contrario de filmes de ficção escutamos mais que falamos. E, por conta dessa escuta, saímos sabendo muito mais do que no início das filmagens. O processo de edição consolida o entendimento. Foi assim que o conceito de multilateralidade das organizações internacionais invadiu nosso dia a dia e entendemos que a influencia dos países que mais contribuem com o financiamento das instituições, confere também a eles um poder maior na condução de seus interesses. Mas, como diz, Celso Amorim, um dos depoentes do SINFONIA DE UM HOMEM COMUM, melhor uma organização multilateral deficiente do que deixar negociações por conta da bilateralidade.

Não queríamos que a invasão do Iraque fosse vista como algo pertencente ao passado. Achávamos importante que essa história fosse atualizada. Quando anos depois Bustani foi convocado para dar seu depoimento no Conselho de Segurança da ONU sobre a manipulação de relatórios dos inspetores da OPAQ, surgiu a oportunidade de fazer essa atualização. No desfecho do SINFONIA DE UM HOMEM COMUM, Bustani, impedido mais uma vez de se manifestar, atualiza a necessidade de que organizações internacionais sejam monitoradas.

Concluindo, independentemente dos propósitos que conduzem as organizações internacionais, é sempre determinante a independência que cada gestor deve imprimir à sua tarefa.

Quis o destino que a imensa pressão exercida sobre a OPAQ em 2002 para afastar empecilhos à invasão de um país, encontrasse à frente da organização alguém como o Embaixador José Mauricio Bustani, que no seu último discurso como diretor geral, diante da Assembleia Geral, forjada ilegalmente para destitui-lo, ratificou os princípios que o nortearam a permanecer no seu lugar.

Se tivesse renunciado e concordado em me retirar, meus algozes teriam me dado “uma saída digna” e minhas conquistas ao longo de cinco anos de gestão teriam sido até mesmo aplaudidas, entretanto me recuso a renunciar, não porque quero me agarrar à minha posição, mas porque não renunciando estarei preservando o direito a cada um de vocês e até mesmo aos menores países membros entre vocês de declararem publicamente sua posição nessa questão muito séria…. “

Com esse fecho no seu discurso de despedida, Bustani chamava às falas os embaixadores de todos os países alinhados à OPAQ, que, na sua maioria pressionados pelo país hegemônico terminariam votando por sua destituição assim contribuindo na liberação de mais um empecilho à destruição de um país.

Como o tempo é mesmo senhor da razão, em seguida à tragédia onde morreram centenas de milhares de pessoas, ficou provado que Bustani estava certo, o Iraque não tinha mesmo armas de destruição em massa. Aliás, como testemunharia singelamente o General Colin Powell, antes tão assertivo sobre a existência dessas armas.

O resto é a história recente. Depois de punido e vagando meses pelos corredores do Itamaraty, Bustani, eleito Lula, reconhecida sua destemida resistência, foi nomeado nosso embaixador na Inglaterra e depois na França.

Hoje, funcionalmente aposentado, mas extremamente ativo, Bustani se exercita no piano e continua informado sobre todas as questões que tratava quando na ativa.

é cineasta, diretor, roteirista, produtor e ator brasileiro. Dirigiu o documentário “Sinfonia de um homem comum”, sobre a história do diplomata brasileiro José Maurício Bustani.

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