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Com os cheiros das flores de laranjeiras: nossa identidade através da Cultura

“As palavras são intemporais.

Você deve pronunciá-las, ou escrevê-las,

lembrando que são intemporais.”

(Gibran Khalil Gibran)

 

Do jardim vinham os aromas de flor de laranjeira e jasmim. As flores das laranjeiras, as laranjas acabadas de cortar, misturam-se no ar com o perfume e o sabor intenso das especiarias. O indispensável zaatar, orégano, hortelã…

O perfume do jasmim em flor daba as boas-vindas aos que chegavam à casa. Na primavera, dia e noite, essa mistura de doçura inconfundível acompanhava os nossos dias.

Seria muitos anos depois dessas experiências familiares que eu me perguntaria o que é a identidade. A identidade, esses traços que nos fazem reconhecer-nos como parte de uma comunidade, que nos diferenciam dos outros, como nos explicam os dicionários.

Mas essa identidade é constituída por vários elementos. As diversas percepções constituem um modo de pensamento. A escrita – a arte da palavra – recria um ambiente, descreve situações, personagens e paisagens. Ela nos comunica e nos transmite uma bagagem cultural.

As letras, as cores, os sabores, os aromas, os sons expressam sentimentos, emoções, simpatias e rejeições. Características de uma cultura, de sujeitos e objetos. Uma cultura que utiliza os meios de comunicação, desde os interpessoais até aos mass media tecnológicos; aquela que nos explica um axioma que tudo comunica e que é impossível não comunicar.

Enfatizando a percepção visual como modo de inteligência e pensamento e a relação entre o todo e as partes que compõem a estrutura, seguindo os postulados de Rudolf Arheim, que também refere que cada vez que observamos um objeto, não apenas percebemos suas propriedades, mas também as do objeto, meio e  observador.

Percepção que juntamente com os referidos axiomas e o quadro de referência que envolve cada situação, permitem chegar à identidade, através das manifestações da arte, da gastronomia, dos aromas e acontecimentos quotidianos que são transmitidos de geração em geração, de nós – descendentes de imigrantes – muitas vezes uma mistura de pátria e cicatrizes, raízes da mãe terra e filhos em terra estrangeira.

Quem quando bebê ou na infância não foi embalado pelas ternas palavras de “neme iaiune” (dorme meu filho)…? A arte, suas expressões: poesia, história, música, dança, pintura; os sabores, os aromas, as cores; eles são um ponto de encontro para nossas identidades.

Por meio destas palavras, quis oferecer uma viagem pelos sentimentos, pelos dizeres; onde cada elemento remete para as diferenças que temos enquanto povos que compõem este país e todas as semelhanças que nos fazem compartilhar esta terra.

Uma narrativa de imagens, cores, palavras, sons, perfumes que dão uma forma de contar identidades, para além das raças. Aos nossos antepassados ​​que chegaram com suas malas cheias de sonhos e esperanças e a nós, que desde então convivemos com as diferenças.

Finalmente, e pensando na nossa identidade, neste caso, a identidade libanesa e a honra de ter sido electa como membro correspondente desta recém-formada Academia Libanês-Brasileira de Letras, Artes e Ciências no Rio de Janeiro, Brasil, uma história de ficção tomou forma, baseada na minha avó Kawla, Julia em espanhol, que veio de Qornet el Hamra e que morreu enquanto eu, com quatro anos de idade, brincava com ela na sua cama uma tarde.

O Canto Vermelho

Como sempre, o aroma pleno das flores de laranjeira inundou a cozinha. Decidi preparar um café branco, como a Avó costumava chamar-lhe. Procurei o rakwe, um pequeno recipiente de bronze ou alumínio, ao estilo argentino, com uma pega, uma pega longa de madeira.

Agora, com ele na minha mão, e com a água, coloquei-o a ferver. Escolhi os ingredientes que o tornaram tão especial: água de flor de laranjeira (quando não havia nenhuma em casa, substituí-a por água de rosas); depois açúcar e uma semente de cardamomo esmagada. Já no ar estava o aroma floral, o sabor doce, fresco e picante, tudo ao mesmo tempo.

Fechei os olhos e imaginei que estava chegando ao porto. O cheiro das flores e as especiarias me transportou para os finais dos anos do 1800. Uma terra distante. E aquele azul mediterrânico impossível de esquecer:  às vezes claro, às vezes escuro. A hora do dia tornava-o profundo, infinito… Azul.

Tinha que continuar preparando o café, faltava pouco tempo para sair. Provei meu bebida lentamente. Os perfumes se misturaram com as lembranças, e passaram pela minha cabeça como num filme. Aiune, meus olhos, mina avó costumava dizer-me, e eu corria para seus braços, sempre abertos para mim. E chegava um cara e depois outro, e eles se serviam um café forte, intenso e quente. A cafeteira tinha café durante todo o dia.

(Fechei os olhos e imaginei que estava chegando ao porto. O cheiro das flores e as especiarias me transportou para os finais dos anos do 1800. Uma terra distante. E aquele azul mediterrânico impossível de esquecer:  às vezes claro, às vezes escuro. A hora do dia tornava-o profundo, infinito… Azul.

Tinha que continuar preparando o café, faltava pouco tempo para sair. Provei meu bebida lentamente. Os perfumes se misturaram com as lembranças, e passaram pela minha cabeça como num filme. Aiune, meus olhos, mina avó costumava dizer-me, e eu corria para seus braços, sempre abertos para mim. E chegava um cara e depois outro, e eles se serviam um café forte, intenso e quente. A cafeteira tinha café durante todo o dia.

Faltava-me colocar algumas roupas na mala. Meu vestido branco de bambu com bordados da mesma cor, que me lembrava as manhãs junto ao mar, o ar marinho e aquela típica mistura de gotas salgadas que costumavan salpicar as ondas.

Respirei fundo como se quisesse ter mais coragem. Fechei a mala, verifiquei os meus documentos na mina grande bolsa cor de manteiga e coloquei meu lenço de seda, aquele iridescente de rosas claros e dourados.

Eu já estava a caminho do aeroporto, repetindo mentalmente “o Canto Bermelho”, era muito importante lembra-lo, era o começo e o fim.

Cheguei, fui direto para o embarque. Muitas horas de vôo me esperavam. Nunca tinha feito uma viagem tão longa.

Tantos pensamentos passaram pela minha cabeça que, às vezes, pensei que seriam ouvidos. Dormia de vez em quando, depois bebia água, comia um biscoito, ouvia música, olhava o celular.

As horas passaram, a noite virou dia e continuamos a voar. Veio uma aeromoça, ofereceu-me o pequeno-almoço e escolhi um café intenso. Finalmente ouvimos o piloto anunciando a chegada pelo alto-falante. Muitas mãos foram vistas tirando casacos, arrumando cabelos. E para descer.

Cheguei à rua, já depois da manhã, de calor intenso nesta geografia. Tinha guardado na memória os nomes das ruas e o endereço. Ao longe, consegui perceber o aroma das flores de laranjeira que, com a suave brisa do mar, começou a inundar.me o rosto. Mais um quarteirão e eu chegaria ao meu destino. Quando cheguei  à esquina, virei à direita e fiquei mesmo em frente ao Canto Vermelho, Qornet el Hamra, a cidade onde a minha avó Julia nasceu.

Escritora, jornalista, e conferencista, de Mendoza, Argentina. Mestre em comunicação e educação (UAB). Sócia-correspondente na Argentina para a Academia Líbano-Brasileira de Letras, Artes e Ciências. É diretora e editora da revista internacional “Diafanís", Arte, Ciência e Comunicação.

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