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Conto para a Revista Libanus: O espelho, a menina e o mascate

O pequeno espelho de cristal serve à mesma família há várias gerações. Sempre teve uma reflexão perfeita, sem turvação. Gaba-se de não ter rachaduras, lascas e outros danos. Mas anda cansado. Acusa a passagem do tempo. Lembra-se que veio sacolejando aos solavancos por estradas poeirentas a bordo de uma carroça com toldo, puxada por uma parelha de cavalos. Não sabe a data em que chegou ao Passo do Cipó, mas foi depois que estourou a Primeira Guerra Mundial. Só tinha uma certeza. Era uma encomenda especial para uma mocinha de nome Eulália.

Foi adquirido pelos Souza Borges de um turco que mascateava tecidos e miudezas sarandeando pelas entranhas rurais de Rio Grande, Pelotas e Bagé. Na verdade, era um libanês, falava árabe e um português meio arrevesado. O mascate, chamado Habib, era sempre bem recebido por aquelas paragens. Havia conquistado laços de amizade e confiança muito fortes, por meio da mascateação. As pessoas da casa estavam sempre curiosas pelas novidades que trazia e ávidas por adquirir alguma coisa. De dois em dois meses ele aparecia com um novo e variado estoque de mercadorias. Aceitava até pedidos de encomendas, que cumpria religiosamente.

Não é simples encontrar as respostas, que podem residir na composição única e particular desse admirável país, em sua história rica, secular e incomparável.

O mascate usava bombachas e botas, como as pessoas da campanha. Gostava de seu nome e fazia questão de traduzi-lo, explicando em voz alta que Habib em árabe significa amado ou querido. E acrescentava que na sua terra natal também podia ser usado como sobrenome e até como nome próprio de um homem, como no seu caso.

O árabe era um ilusionista, sabia como mexer com a curiosidade e o interesse das pessoas. Marcava presença por ser divertido e atencioso. Um hábil comerciante forjado na intuição e sagacidade típicas dos imigrantes do Oriente Médio. Adquiriu experiência no comércio ambulante trilhando os fundões do pampa. Fazia uso da sua fala envolvente para cativar a freguesia e fazê-la abrir as algibeiras. Vendia fiado e anotava tudo num caderninho de bolso.

Era conhecido pelos seus clientes como o turco da prestação.

Tinha o seu bordão favorito e o repetia diante de cada leva de compradores, sobretudo mulheres, alvo principal de suas vendas:

– Venha! Venha!  Habib baz preço, breguesa. Habib baz negócio brestação, senhora.

Neste dia especial, ao chegar à propriedade, Habib se dirige ao galpão onde esparrama todos os artigos sobre uma mesa. Exalta os produtos e o baixo preço. Depois, passa a conquistar a freguesia que se acotovela no entorno, citando provérbios árabes com graça.

Eulália se aproxima um pouco apreensiva e pergunta:

– Seu Habib, o senhor trouxe a minha encomenda?

O vendedor ambulante coça a cabeça, ergue as sobrancelhas, fecha um olho e, com um jeito matreiro, apanha um saco de aniagem; retira de

dentro um espelho de mão, sorri, e responde:

Habib non esquece. Habib non falha. E o entrega à menina.

A guria arregala os olhos. Vibra de emoção. Fica completamente enfeitiçada por aquele cobiçado objeto do desejo. Abraça-o contra o peito, rodopia em torno de si e dispara em direção ao interior da casa. Retorna alguns minutos depois com a mãe a tiracolo.

O mascate se prepara para a negociação, mas logo percebe que não há necessidade. A dona da casa sequer cogita regatear. Contagiada pela alegria da filha, compra ainda tecidos, maquiagem e lenços de seda. O espelho lhe trouxe sorte, pondera o mascate, radiante.

A partir daquele dia, o espelho coloriu e alegrou o quarto e a vida de Eulália. Era delicado, tinha detalhes pintados à mão que encantavam. Por ser prático e versátil, permitia ser carregado na bolsa para qualquer lugar. Assim, tornou-se um fiel aliado.

Décadas se passaram. Hoje é apenas um espelho antigo abandonado numa gaveta da cômoda. Ainda carrega a vaidade; considera-se uma peça de arte rara. No fundo, sabe que seus trunfos são apenas a sabedoria e a experiência acumuladas. Sente saudade daquela época da sua chegada, em especial de Eulália. Juntos compartilharam segredos íntimos, emoções e infortúnios. Mas ela já se foi…

Não há justiça na passagem do tempo. Dizem que um espelho guarda parte da alma da pessoa refletida. Para aplacar a melancolia, relembra e reconforta-se num ditado árabe citado muitas vezes, num tom comovido, pelo mascate libanês:

– O amor não envelhece, morre menino.

Jorge Alfredo Barcellos

(foto: Pintura 50×60 cm, por Ernesto Duarte (Brasil), Óleo em Tela).

Escritor diplomado da Oficina de Criação Literária Alcy Cheuiche.

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