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Da feijoada árabe à feijoada brasileira

A feijoada à brasileira é uma das expressões da identidade, memória, cultura e gastronomia no caldeirão da formação miscigenada do povo brasileiro. A comida é degustada entre todas as camadas sociais e um dos ícones da culinária do País. Por outro lado, no Oriente árabe existe também o prato mais que milenar de ful ou de façulia, fava ou feijão, chamada de yakhné, um guisado, um tipo de feijoada árabe, também degustada entre todas as camadas sociais. O conceito das duas feijoadas é o mesmo, reunir ao redor de um prato vários amigos para confraternizar.

No Brasil, é relatado de uma geração para a outra que a feijoada foi criada nas senzalas, por escravos africanos, que cozinhavam o feijão preto com partes de carnes de porco desprezadas pela elite. Criou-se uma forma de folclore, com linhas socioculturais afro-brasileiras, para camuflar o período escravocrata em que os escravos eram mal alimentados.

O guisado no Oriente

Já o Oriente é o berço da civilização e da arte da culinária e é importante entendermos a criação da feijoada local neste contexto.

Um dicionário bilíngue sumério-acadiano, de escritura cuneiforme, datado de cerca de 1.800 anos antes de Cristo, foi encontrado com várias receitas, incluindo guisados de carne e leguminosas, como a fava – al-ful, em árabe, cozidos em um caldeirão de barro em cocção lenta. A Bíblia (Segundo Livro de Samuel 17:28), cita, em uma referência de 6 mil anos antes de Cristo, o guisado como um alimento energético. O guisado em referência é o árabe, marqat ou yakhné, com carne de cordeiro – kharuf, em árabe – awassi, uma raça originária do deserto sírio-árabe, de cauda bem gorda.

Um dos primeiros manuscritos árabes, do século VIII, veio de Bagdá, Iraque, e trata-se de Kitâb al-Tabîkh al-Mahdî – Livro da cozinha al-Mahdi  – e outro do século X  é Kitâb al-Tabîkh Al-Warrâq – Livro da cozinha al- Warrâq.

São os manuscritos mais antigos da cozinha árabe. Com as caravanas de beduínos, as receitas chegaram a outras partes da Península Arábica, região austera, e no Mediterrâneo.

Expansão do guisado árabe

No século VIII, os muçulmanos árabes conquistaram a Península Ibérica e introduziram culturas, costumes e produtos como a fava branca e o arroz. Pelas mãos das mulheres árabes chegaram na Europa várias receitas árabes, como o guisado de favas com pedaços de cordeiro. Surgiram, então, na Europa, os guisados com favas, que são feitos com feijão até hoje. Exemplos são o cozido, em Portugal; a fabada, na Espanha; o cassoulet, na França; e a cazzuola, na Itália. E os europeus substituíram a carne de cordeiro pela carne suína, não consumida pelos árabes muçulmanos, para os quais a carne de porco é proibida por Deus.

No século XV, Cristóvão Colombo chegou às Américas e encontrou uma leguminosa nativa da região, o feijão, que foi levado para a Europa, destronando assim a fava e passando o prato a ser guisado de feijão com carnes.

A chegada ao Brasil

No século XVI, a receita de guisado atravessou o Oceano Atlântico com os colonizadores portugueses e chegou ao Brasil, e dessa vez pelas mãos das mulheres portuguesas como guisado de feijão branco com carne de porco.

Os portugueses observaram a forma alimentar dos indígenas e descobriram um outro tipo de feijão no Brasil, o feijão preto, de origem sul-americana. Os indígenas cozinhavam o feijão preto e depois o amassavam em um pilão de madeira, com pimenta e ervas, adicionavam água e engrossavam o caldo com farinha de mandioca, formando um purê ou pirão de feijão. Também os portugueses observaram os africanos no Brasil, que comiam o pirão indígena, mas acrescentavam o azeite de dendê, originário da África, e outras especiarias africanas.

Com isso, os portugueses recriaram seu guisado de feijão preto, incrementaram com a farinha de mandioca e as especiarias indígenas e africanas. Introduziram o arroz no Brasil, trazidos pelos árabes, como arroz, que passou a ser pronunciado em português “arroz”. No Brasil, antes de chegarem os portugueses, existia um cereal, tipo arroz, nativo que os indígenas tupi chamavam de abati-uaupé, literalmente milho com casca ou milho d’água.

Assim, o guisado chegou em uma encruzilhada de miscigenação, influência étnico-cultural árabo-luso-brasilíndio-afro, e nasceu então mais uma das várias versões da receita do guisado, o de feijão preto no Brasil.

A feijoada à brasileira

O guisado que saiu do Oriente, passou pela Europa, chegou no Brasil, adaptou-se ao feijão preto, sul-americano, e passou a ser um guisado de feijão preto engrossado com carnes de porco,

com adição de farofa de mandioca. Com criatividade brasileira, passou a ser chamado de porção de feijão bem misturada e depois então de feijoada, ganhando o “ada” de “misturada”.

Esse banquete da feijoada à brasileira começou a ser apreciado pela elite do Nordeste e divulgado a partir do século XIX, conforme a edição de 03 de março de 1827 do Jornal Diario de Pernambuco, em um dos primeiros anúncios de feijoada à brasileira: [Restaurante] Locanda da Águia D’Ouro – as Quinta-feiras excellente feijoada a Brazileira. No Rio de Janeiro, um dos primeiros anúncios foi no Jornal de Commercio, na edição de 05 de janeiro de 1849, com o título: A bela feijoada à brasileira.

O guisado árabe no Brasil e a feijoada com cordeiro no mundo árabe

Por outra via, a da imigração árabe para o Brasil, que ocorreu desde o século XVIII, o guisado original árabe de feijão branco, com carne de cordeiro e arroz, também chegou ao Brasil pelas mãos das mulheres imigrantes árabes, e hoje é comum encontrar no Brasil esse guisado de feijão com carne de cordeiro, o Yakhné façulia bil-lahmeh kharuf.

No mundo árabe, especialmente no Líbano, a comunidade brasilibanesa (neologismo que criei para cidadão binacional brasileiro-libanês), também pelas mãos das mulheres brasilibanesas, criou uma nova variante, a feijoada à brasilibanesa, com feijão preto, hoje plantado no Líbano, com carne de cordeiro, linguiça de carne de carneiro e carne bovina e farofa de semolina (não há ainda plantação de mandioca no Líbano), frita com ovos, amêndoas e sal.

A feijoada tornou-se um prato híbrido, uma miscigenação oriental, europeia, amiríndia e africana. Cada pessoa faz a feijoada ao seu estilo, como versou Vinicius de Moraes: Feijoada à Minha Moda.

 

Prof. Roberto Khatlab

é pesquisador e escritor, diretor do Centro de Estudos e Culturas da América Latina na Universidade Saint-Esprit de Kaslik (Usek) no Líbano; é sócio correspondente da Academia Líbano-Brasileira para o Líbano.

2 Comments

  1. Interessantíssimo assunto abordado entre a diversidade culinária do Oriente, passando pela Europa, chegando as Américas!

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  2. Gostei muito da revista . Parabéns Insha Allah vai ter muito sucesso.. Chukran por essa iniciativa.

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