“A culinária é uma das maiores expressões do comportamento humano, do saber humano, da criatividade humana, muito do saber humano está naquilo que você come”. (Gilberto Freyre)
Os libaneses sempre se orgulharam de sua culinária, afinal são receitas ímpares passadas de uma geração a outra. Após ser inserida pelos imigrantes no exterior, a culinária do Líbano começou a se expandir, espalhando-se em restaurantes que se adaptaram ao mercado local, atraindo pessoas que procuram saborear deliciosas receitas com temperos únicos.
Porém, apesar de o Líbano adotar a cozinha de fusão, há alguns motivos pelos quais a comida libanesa se tornou tão renomada, além das aulas de culinárias on-line e dos vídeos de pratos superlotando as redes sociais: um alimento, um tempero e duas realidades.
- Azeite – é um alimento que é amplamente usado nas refeições do Líbano. Para os libaneses, ele é tão saudável que deixa uma cozinha mais saudável ainda, e as pessoas podem comer sem se sentirem culpadas. É uma espécie de craque do meio campo!
- Zaatar – Este tempero é o segredo que faz da comida libanesa ser tão atraente. Trata-se de uma coleção de diferentes ervas, incluindo orégano, tomilho e manjerona. Misturadas, ela se tornam um componente essencial, além de ter um gosto que dificilmente se consegue em outras cozinhas. E embora os molhos possam ter um sabor incrível, a culinária libanesa não depende tanto deles, uma vez que a mistura dos alimentos com as especiarias dão conta. É o chamado centro-avante rompedor.
- Produtos Frescos – a popularidade da culinária libanesa reside essencialmente neste item. A procura por alimentos saudáveis e o consumo de produtos frescos ganharam tanta força, como se a cozinha do Líbano fosse um jogador imprescindível na zaga de um time.
AS NOVE ERVAS E UM MOLHO.
No Líbano, não é preciso estar diante de um forno para adivinhar qual a comida que está sendo preparada. As moléculas de odor se desprendem e se espalham pelo ar, penetram nas narinas.
Excelência do Sabor – É o componente catalisador das refeições. O sabor da comida libanesa se caracteriza como uma nova experiência para os que nunca experimentaram e uma memória afetiva para os que conhecem. Quando se trata de pratos libaneses, o sabor se apresenta em sua plenitude, afinal, a variedade de ervas e diferentes especiarias estão na sua essência.alcançam as células na parte mais interna do nariz, desfechando mensagens químicas: essa é, mais ou menos, a definição técnica do cheiro.
É justamente nos aromas que o sentimento de lembrança da terra acaba atingindo em cheio os libaneses. O resto são receitas milenares e a fusão dos alimentos.Tirando o zaatar, parte dos segredos da culinária libanesa repousa nas oito principais ervas aromáticas e um molho: manjericão (ou manjerona), coentro, salsa, orégano, hortelã, açafrão, cardamomo, sumagre, melaço de romã e gergelim, conhecidos como “As 9 ervas e um molho”.
Manjericão (ou manjerona), coentro, salsa, açafrão e hortelã são bem conhecidos na culinária brasileira. Porém, o cardamomo, o sumagre, o melaço de romã e o gergelim formam o diferencial trio de ataque no jogo da gastronomia.
1.Cardamomo: as sementes de cardamomo (hel, em árabe هال) exercem uma fascinação no palato do povo, uma vez que elas têm aroma e sabor únicos, “doce-picante” e ligeiramente aromatizadas. Estão associados aos hábitos e costumes locais, desde o seu uso em alguns pratos da gastronomia local, na remoção do ranço de alimentos, até na mistura com grãos de café batidos no pilão chamado de “Al-Mahbesh” (em árabe, المهباش);
2.Sumagre سماق (sumac): é uma das plantas mais cheirosas e de sabor forte e surpreendente, com vários níveis de paladares. É sustentáculo do popular e célebre “Zaatar”, e é considerado um dos mais importantes temperos da culinária do Líbano, geralmente usado como condimento, substituto de outros conteúdos ácidos;
3.Melaço de Romã (Debs Arremman): O melaço da fruta romã nunca está ausente das casas libanesas. Ele substitui muitas vezes o vinagre e o limão, e tem um sabor característico usado em muitos pratos da cozinha libanesa, como nas saladas, no “Fatuche” e nas folhas de uva, uma vez que tem um sabor misturado de doce e amargo.
4- Gergelim: também conhecido como sésamo, é uma semente proveniente de uma planta cujo nome científico é Sesamum indicum, caracterizada pelo seu grande valor nutricional, sendo ricas em proteínas, ácidos graxos insaturados, cálcio, magnésio, vitamina E e fibras. É usado muito na culinária, usado como pasta, passando a se chamar Tahine, famoso na composição do Homus.
Em tempo: há outras ervas aromáticas como o endro, alecrim etc., que estão sempre a postos para entrar no jogo da gastronomia e são, também, craques.
GRÃOS: OS RESERVAS QUE GARANTEM O RESULTADO.
A história cultural única ajudou a tornar a comida libanesa a mais popular entre as cozinhas do Oriente Médio, pois combina pratos principais e acompanhamentos (aperitivos), bem como sobremesas.
E se normalmente a gastronomia libanesa começa com a famigerada “mezze” (mais de 30 pratos de aperitivos), as principais refeições são baseadas em carnes, iogurte, frango e peixe.
Porém, como num jogo de basquete, enquanto os principais atletas da equipe garantem o resultado, sempre são escorados por um sexteto, ou os reservas de ouro – aqueles que entram para compor e manter a qualidade do resultado: os grãos!
Composto pelo triguilho, trigo, lentilha, feijão, arroz e grão de bico, esse sexteto geralmente ocupa posições específicas, relacionadas às características dos pratos.
O triguilho é o “armador”, ágil e que controla a progressão, ingrediente básico para o quibe, o tabule e outros pratos da culinária libanesa.
Já o trigo seria o “ala-armador”, bom arremessador de médias, a sua espécie chamada “Salamouni” cultivada especialmente nas regiões de Aarsal, Nabha e Ham, no Bekaa, serve de matéria-prima para alimentos básicos, como o pão, “freekeh”, “kichek”.
O feijão e a lentilha são as “alas”, atuam mais próximos à cesta e são considerados jogadores completos, pois conseguem jogar no garrafão. A Mujadara (arroz com lentilha) é um prato popular conhecido como “a carne dos pobres”, e o feijão compõe também o prato “Makhlouta”, um dos mais antigos e tradicionais ensopados do Líbano.
Não podemos esquecer do internacional arroz, o “ala-pivô” que joga na cabeça do garrafão, de costas para a cesta, tem bom arremesso de média distância e que acompanha muitos pratos.
Por fim, aparece o grão de bico jogando como “pivô” que é geralmente o jogador mais alto e forte do time, joga tanto no ataque, arremessando a curtas distâncias, quanto na defesa, efetuando rebotes e tocos. Os seus derivados, Homus Bi Tahine e outros semelhantes que o digam.
ALHO: A PERSONALIDADE DA GASTRONOMIA DO LÍBANO.
Um dos maiores mistérios da culinária libanesa gira em torno do alho (toum em árabe, ثوم) e traz com ele um sabor especial, um preparo altivo e uma pitada de sorte.
Sim, ele é como se fosse um nadador de competição de equipe de revezamento medley 4x100m: faz parte do conjunto, abre a prova, dita o ritmo e, quando o time ganha, infelizmente o seu mérito é ofuscado pelos nadadores estrelas.
Temido pelo seu cheiro, o alho derrubou mitos, popularizou-se e passou de elemento – quase que presente em todas as receitas da culinária libanesa-, para se transformar em estrela “molho de alho” de vários pratos, em especial os “mechuis” e o “Chich Tawuk”(frango).
Esse molho é tão característico no Líbano que nunca passa despercebido. Com uma textura branca e cremosa semelhante à da maionese, creme de leite ou “Labneh” (coalhada seca), o molho “toum” possui um aroma pungente de alho e água na boca, mas a exalação tem muito de um paladar tão peculiar, que a gente se esquece que há alho, mas sim um halo, uma glória e um resplendor à comida.
O processo de fazer este molho de alho é delicado, e a razão é provavelmente devido ao chamado método de “emulsão”, que permite a mistura de líquidos (água) e óleos, transformando-se num “creme”, com a ajuda de uma força mecânica externa, agitando, mexendo, girando ou mesmo usando ondas ultrassônicas. É essa “emulsão” que está no centro da produção do molho de alho.
Tradicionalmente, o molho “toum” era feito com pilão, onde as mães libanesas adicionavam primeiramente os dentes de alho recém-descascados e, logo depois, o sal, martelando-os até ficarem completamente esmagados. Depois, adicionavam um pouco de azeite e batiam mais um minuto. E assim, repetiam essa etapa até adicionar o azeite e acrescentar, em seguida, algumas gotas de suco de limão por toda parte. É aí que está o segredo! O limão dá a liga do paladar. O resto é puro palato.
“EL AKEL, NAFASS”, O ESPÍRITO DA CULINÁRIA.
No Líbano e na região do Oriente Médio usa-se muito a expressão: “el akel nafass” الاكل نفس (comida é coisa espiritual– trad livre), e quem tem o tal de “nafass” نفس (espírito da culinária) traz com ele um sabor especial, um preparo altivo e uma pitada de sorte.
A bem verdade é que, nesses tempos de segurança alimentar, agro-negócio, restaurantes, exposição de alimentos, programas de gastronomia na TV , eventos e festivais de culinária, receitas nas redes sociais e cursos de gastronomia, ser Chef acabou sendo mais do que uma profissão, tornou-se um emprego que gera muito dinheiro e a sua indústria simplesmente é muito rentável.
Voltando à culinária libanesa, ela pode oferecer mais do que apenas uma deliciosa gastronomia: ela explora origens e histórias, refletindo a extensão do intercâmbio cultural que ocorreu entre as várias civilizações e povos que passaram pelos países árabes desde os primórdios da história.
O Líbano sempre forjou uma herança e identidade na sua culinária e é um lugar onde, independentemente da religião ou herança étnica, as pessoas se unem em torno da experiência e do prazer da comida.
Afinal qual é o segredo da culinária libanesa perfeita? Onde se esconde o tal de “nafass el akel”نفس الاكل (espírito da culinária)?
Vasculhamos a casa da avó libanesa à procura de algum livro de receitas. Quais eram os mistérios dessa comida? Seriam os temperos, o azeite de oliva, os vegetais? Ou eram os aromas, as especiarias e os sais? Seriam as lentilhas, o trigo, o gergelim e a romã? Ou eram a noz-moscada, o cominho, o coentro, a salsa e a hortelã?
E de repente, encontramos uma rosa velha guardada no fundo de um baú.
A avó morreu deixando o mistério num pedaço de papel no caule dessa rosa: “O segredo da culinária é o cozinheiro ser uma pessoa paciente e generosa”.