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Eglê (e as muitas Eglês)

ASSIM SERÁ MEU CANTO (1947)

 Eu quero que minhas palavras Sejam o eco de outras mil vozes,

Que da minha boca saia um canto de união, O que eu disser de suave

Terá o amor do que me foi negado, O que eu cantar de lindo

É o que deverá ser conquistado.

Que o meu canto seja áspero e cruel, Verdadeiro e leal,

Que ele seja gemido sublimado E ódio construtor,

Que ele espelhe a história ciclópica De um povo em luta,

De um povo em marcha É o meu desejo, enfim.

Meu canto – canto de mocidade Lira do povo,

Palavras do hoje e do amanhã.

(Do livro Manhã, de Eglê Malheiros. Cadernos Sul II – Florianópolis, 1952)

 

“De nascimento, Eglê da Costa Ávila Malheiros. Do casamento, Eglê Malheiros Miguel. Eglê Malheiros, nome literário”, conta Eglê em entrevista concedida nos anos 1990. Eglê: poeta, professora, tradutora, editora, roteirista, dramaturga, a primeira mulher a se formar em Direito em Santa Catarina, mãe de cinco filhos, militante comunista, avó, bisavó, companheira de Salim Miguel por muitas e muitas décadas, amiga, generosa e espalhadora de conhecimento. Eglê, a primeira leitora dos escritos de Salim (confidente e revisora cuidadosa). Eglê é muitas, e, em cada lugar que ocupou e ainda ocupa, reverbera a marca de sua profunda generosidade intelectual e de sua prática calcada no entendimento da necessidade de transformação do mundo. Foi assim conosco, equipe do documentário “Eglê” (2023). E foi assim desde que a conheci, no início dos anos 1990. É sua marca deixada em muitas, muitas pessoas.

Talvez devesse iniciar o texto contando quando foi que Eglê e Salim Miguel se conheceram, mas, pelo que eles disseram em entrevista ao documentário “Salim Miguel na intimidade – Maktub” (2004), de Zeca Pires, nenhum dos dois sabia exatamente. O que lembravam é que foi lá pelos anos 1940, quando uma turma de jovens que viviam em Florianópolis decidiu mudar os rumos das artes em Santa Catarina. Estavam lá os dois, Eglê e Salim, na origem do Círculo de Arte Moderna, o famoso Grupo Sul, atuante e protagonista na cultura catarinense entre os anos 1940 e 1950.

Eglê foi a única mulher a acompanhar todo o percurso do Grupo Sul. E sabe-se que, ainda muito jovem, aos 18 anos, já era a grandeza intelectual e política daquela turma que revolucionou Florianópolis e que, de lá, alcançou, mesmo sem tanta pretensão, como ela mesma conta, outros lugares do país e do mundo. Fizeram de tudo: peças de teatro, poesia, crônica, a Revista Sul, as Edições Sul, artes plásticas. Produziram um filme lá naquela ilha tão ao Sul.

Eglê sempre firme e ousada junto ao grupo que era composto praticamente só de homens. Lá no final dos anos 1950, escrevendo, em parceria com Salim Miguel, o roteiro do primeiro longa-metragem filmado em Santa Catarina (O preço da ilusão, de 1958), ela abria portas para nós, mulheres que hoje estamos fazendo cinema, dirigindo, roteirizado filmes aqui em Santa Catarina. Em 1952, aos 24 anos, pelas Edições Sul, um dos “braços” do Grupo Sul, Eglê publicou seu primeiro livro de poemas, Manhã.

Eglê completou 95 anos em 3 de julho de 2023. Vive em Brasília com a filha Sônia e está cercada também dos cuidados dos outros quatro filhos: Veet Vivarta, Antônio Carlos, Paulo Sérgio e Luis Felipe Miguel. Muitos netos e bisnetos. Uma família que cresceu acompanhando a trajetória de luta da mãe militante. A coerência política de Eglê não deixa margem para dúvidas: quase um século de luta pela democracia e a consciência da realidade que vivemos hoje no Brasil ainda muito potente. “Uma dose de história não faz mal a ninguém”, reflete ela em entrevista ao nosso documentário “Eglê” (Prêmio Catarinense de Cinema 2019/FCC/ANCINE/FSA), produção da Margot Filmes e coprodução da Lilás Filmes e Calêndula Filmes. O filme, junto ao Projeto Acervo Eglê, desenvolvido por Gabi Bresola e Leila Pessoa, da Ombu Produção, foi lançado em julho de 2023, no Museu da Escola Catarinense (MESC), em Florianópolis, dentro das homenagens pelos seus 95 anos. Eglê recebeu nossa equipe, formada só por mulheres, em 2018 e 2021, com muita alegria e a mesma coerência que marca seu percurso. Deu opiniões sobre o documentário, foi assistindo trechos durante a montagem e repercutiu seu olhar sobre o processo com a equipe. Mais uma vez, espalhou sua generosidade entre nós.

Eglê Malheiros tem uma história de muitas mudanças. Uma trajetória que atravessa quase um século da vida política, cultural e social do país, e que é também profundamente atravessada por tudo que aconteceu neste período histórico. Nasceu em Tubarão, no Sul catarinense, em 1928, mas logo em seguida a família mudou-se para Lages, na Serra. É a primeira de quatro irmãos. Em 1932, seu pai, Odílio Cunha Malheiros, advogado, diretor do jornal A Defesa, militante da então Aliança Liberal, foi assassinado por motivações políticas. No mesmo ano, a mãe de Eglê, Rita da Costa Ávila Malheiros, se transfere para Florianópolis com os quatro filhos pequenos.

Eglê cresceu em Florianópolis e desde muito menina desenvolveu o gosto pela leitura, pelo conhecimento nas várias áreas, pela militância. Estudou em Porto Alegre, em Joinville e começou a lecionar ainda muito jovem. Ao retornar a Florianópolis, com 18 anos, cursou a Faculdade de Direito de Santa Catarina e foi a primeira mulher a se formar em Direito no estado. Também aos 18 anos, ingressou no Partido Comunista Brasileiro (PCB), espaço no qual já militava anteriormente e onde exerceu grande influência. Sua mãe, Rita, também era filiada ao PCB e chegou a ser candidata a deputada federal nas eleições de 1947.

Professora concursada do Instituto Estadual de Educação (na época, em 1948, então Instituto de Educação Dias Velho), lecionou História Geral, História do Brasil e História de Santa Catarina. Foi presa em Florianópolis por cerca de 50 dias em abril de 1964, logo após o golpe civil-militar, e impedida de continuar lecionando até 1979. Durante o percurso de pesquisa para o documentário “Eglê”, descobrimos muitos ex-alunos que nunca esqueceram aquela professora de história.

Entre 1965 e 1979, a família de Eglê Malheiros e Salim Miguel viveu no Rio de Janeiro, onde Eglê, além de mãe e dona de casa, cuidando dos cinco filhos, trabalhou como tradutora, roteirista de cinema e na Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, da qual foi diretora-secretária. Foi, também, uma das editoras da revista Ficção (1976/79). Foi no Rio de Janeiro, nesta época, que fez o Mestrado em Comunicação na UFRJ.

Em 1979, após a anistia, a família retorna a Florianópolis. Eglê retoma a atuação no magistério, no IEE, por mais dois anos, e se aposenta na sequência. Em 1986, é candidata a Deputada Constituinte pelo PCB.

Foi no início da década de 1990 que a conheci e comecei a acompanhar sua produção e pensamento. E fui descobrindo que aquela menina, que perdeu o pai muito cedo, gostava de escrever para crianças. Desça, menino (1985) e Os meus fantasmas (2002) nos contam um tanto do que ficou escondido na memória da criança órfã de pai e também da pequena revolucionária que desde muito jovem atuava “para mudar o mundo”. Em Vozes veladas (1996), um texto dramático, ela mostra sua profunda admiração pelo poeta catarinense Cruz e Sousa. Além disso, Eglê possui inúmeras publicações em coletâneas e obras coletivas. Assinou uma coluna no Diário Catarinense durante diversos anos. Continuou participando ativamente da vida cultural, social e política em Santa Catarina, embora não mais filiada ao partido, mas posicionando-se sempre na coerência por uma sociedade digna e de direitos para todos.

Em sua residência, em Florianópolis, junto ao marido Salim Miguel, recebeu muitas e muitas pessoas que pesquisavam a trajetória do Grupo Sul, a sua própria história e os temas aos quais sempre dedicou a vida. Os traços de generosidade e coerência política são registros muito fortes de todas as pessoas que falam sobre Eglê Malheiros.

Lembro que tomei alguns cafés com os dois em seu apartamento no bairro Carvoeira, no início dos anos 2010. Fazendo mestrado em Literatura na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pesquisando adaptação literária para o cinema, sabia que precisava ouvir Eglê e Salim sobre o tema. Eglê me emprestou o original de sua dissertação, escrita na década de 1970. E o tema era o mesmo: adaptação literária para o cinema. Ela analisava a adaptação de “Fogo Morto”, de José Lins do Rego, que ela, Salim e Marcos Farias realizaram. Lembro de ir trêmula até a UFSC para fazer uma cópia daquele documento histórico, daquela dissertação. Assim é Eglê: uma mulher precursora e sem nenhum medo de socializar o conhecimento.

Eglê é muitas. E queremos que ela seja conhecida por muitas mais. Para nós, da equipe do documentário “Eglê”, na despedida da entrevista, em 2021, em Brasília, ela disse: “E não esqueçam que nós só existimos porque existem outras pessoas, iguais ou diferentes de nós”. Eglê é muitas. E nos inspira todos os dias a olhar o mundo pelos olhos da coletividade, da generosidade. Somos muitas.

Jornalista, diretora do documentário Eglê

1 Comment

  1. Muito lindas memórias! Documentário bastante elucidativo, parabéns!

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