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Memórias de exílios no Rio- algumas palavras, à guisa de apresentação do livro inacabado

Convence-te de que a cidade mudou, as pessoas estão diferentes, cuidado com as conversas na rua.”

Eglê a Salim em “Primeiro de Abril – Narrativas da Cadeia”

 

“Memórias de um exílio no Rio” é o título provisório que ouvi várias vezes de meu avô, enquanto falava de seu livro em andamento. Ele o batizou, ainda provisoriamente, como “Viver a vida – narrativas de um exílio no Rio”. Essas narrativas ou memórias de um exílio transcorrido no Rio de Janeiro abrangeriam o período em que ele, minha avó Eglê Malheiros e os filhos do casal moraram na cidade maravilhosa, de fevereiro de 1965 a janeiro de 1979. Interrompida por seu acidente vascular cerebral, em fevereiro de 2012, a redação do livro não seria retomada.

Como neto e frequentador da casa de meus avós, enquanto tios e primos moravam todos em outras cidades do Brasil ou do exterior – uma pequena diáspora centrada em Brasília, aonde três filhos deles foram morar, com um filho no Rio de Janeiro e seus netos nestas cidades, mas também no Canadá e na Alemanha (além de um neto que fixou residência temporária em lugares como Rio Branco, no Acre e Belém do Pará) – eu, Jorge Luiz, tinha um acesso especial ao que ele vinha fazendo. Era o único neto morador da Grande Florianópolis, filho único do filho que morava próximo aos pais. Por isso, pude ouvir várias vezes de meu avô – que adorava falar, fosse com quem fosse, sobre seus livros e artigos e contos em andamento –  a notícia de que vinha escrevendo sobre o exílio carioca. Graças a meu pai, Paulo Sérgio Miguel, esse texto inacabado e ainda não publicado foi preservado no espólio do meu avô. 

As “narrativas de um exílio no Rio” foram concebidas para serem a continuação de “Primeiro de Abril – Narrativas da Cadeia”, publicado em 1994, por ocasião dos trinta anos do golpe. Neste livro Salim Miguel partiu das suas memórias e das de minha avó, assim como de anotações feitas no calor da hora, para reelaborar literariamente a história de sua própria prisão e da prisão dela, ocorridas durante os meses de abril e maio de 1964. Da ideia inicial do novo livro foram completados 11 capítulos curtos, partindo de onde “Primeiro de Abril” tinha parado e interrompendo-se num décimo segundo capítulo do qual ficou apenas o título: “Edson Luís”. Ora, esse seria justamente o capítulo destinado a contar a história da comoção provocada pelo assassinato de Edson Luís de Lima Souto, estudante paraense alvejado à queima roupa por policiais militares no restaurante Calabouço, centro do Rio, em 28 de março de 1968. O episódio da morte de Edson Luís constitui peça central do romance “A Voz Submersa”, escrito por Miguel em 1984. No livro, a protagonista Dulce, mulher de classe média e apolítica, é literalmente tragada pela passeata fúnebre.   “Viver a vida – narrativas de um exílio no Rio” se encontraria, no tocante ao universo literário do meu avô, como um elo entre “Primeiro de Abril” (1994) e a “Voz Submersa” (1984), portanto. Em seu bojo esses livros trazem uma meditação continuada sobre o significado da ditadura, tal como vivida na experiência singular de um escritor e dos que o cercavam.

Concretamente, o que temos em “Viver a vida”  é uma narrativa que, após um brevíssimo recorrido dos fatos posteriores à soltura de Salim e Eglê, começa de fato em fevereiro de 1965 – data da mudança da família, e prossegue cronologicamente até o ano de 1968, terminando em data indeterminada, porém anterior à morte de Edson Luís.

Que a insistência em nomear sua experiência como exílio alimentasse meu avô em sua escrita no final de sua vida como escritor é significativo. A palavra exílio é mais um começo que um fim, abrindo mais problemas que os que pode solucionar. Assumida, essa chave interpretativa transfigura os anos de meus avós no Rio em outra coisa, e os exílios vão se multiplicando.

Um ou dois exílios? Eglê Malheiros e Salim Miguel se acompanharam um no exílio do outro, unidos pela amizade e pelo amor em um casamento que já durava treze anos quando o exílio começou. Poderíamos dizer, então: memórias de exílios no Rio, assim no plural, estragando um pouco a beleza do título provisório que guardei. No entanto, é verdade que tiveram experiências profissionais muito distintas nesse exílio: enquanto meu avô prosseguia com a profissão que escolhera, de jornalista e escritor, minha vó interrompia a carreira dela, de professora, e confinava-se ao espaço doméstico, dedicando-se ao trabalho de casa, ao cuidado com os filhos e a ocupações intelectuais compatíveis com esse espaço, trabalhando como tradutora e revisora.

Dois ou vários exílios? Por essa linha de raciocínio, logo se chega às crianças: João José, Antônio Carlos, Sônia e Paulo Sérgio, todos nascidos em Florianópolis, cada um com sua idade, à época do golpe de 1964: 10, 9, 8 e 4 anos, respectivamente. Chegando no Rio de Janeiro em 1965, cada uma dessas crianças, filhos de Eglê e Salim, viveria à sua maneira um exílio, nos limites de suas possibilidades objetivas, de seus temperamentos, da personalidade em formação, marcada por tais eventos. Por fim, há o filho concebido no Rio: Luis Felipe, o filho do exílio, nascido em 1967.

Meus avôs viveram vários trânsitos em sua vidas. Muitos exílios, portanto? Vamos somando. Ponha-se na conta mais dois, um da parte de Salim e outro por parte de Eglê, marcando sua vida quando crianças eram. Meu avô foi transportado aos três anos de idade do Líbano para o Brasil por seus pais, junto com um tio e dois irmãos menores. Aqui ele esqueceria a língua “materna” e tornaria-se um escritor em português brasileiro. A experiência migratória não foi exílio mas poderia ter sido, marcada que foi pela condição mais ou menos forçada dos migrantes em sair de uma terra pobre de oportunidades.

Já minha vó perdeu o pai, assassinado por jagunço dos latifundiários em Lages, na região de Santa Catarina onde ocorreu a Guerra do Contestado. Odílio Cunha Malheiros, jornalista e promotor de justiça, encampara a luta pelos direitos dos posseiros na região, por isso o assassinato. Foi em 1932 e minha avó contava quatro anos de idade. Seguiu-se a itinerância, por ela elaborada no belo e curto conto intitulado “Descobrimentos”.

Meu avô não gostava de livraria em shopping. Dessa obsessão do fim da vida dá testemunho “Nós”, seu último romance, concluído em 2012 e publicado em 2015. É provável que a redação de “Viver a vida” e a de “Nós” tenham sido em parte simultâneas, mas a do último andou mais e concluiu-se. No derradeiro romance as referências a shoppings, a ar condicionado e a livrarias de shopping são várias e sempre desabonadoras. Lembro que a prisão onde “Pepe” Mujica foi torturado tornou-se um shopping center em Montévideu. Agora entendo: nada mais que isto. Este país, onde poderia haver escolas públicas e reforma agrária, este país eles conquistaram, arrasaram e puseram em cima um shopping. Ainda assim, meus avós foram homenageados com uma placa de metal com desenho retratando os dois, batizando a livraria Saraiva do Shopping Iguatemi (atual Shopping Villa Romana) de “Livraria Eglê e Salim Miguel”. Coisas da vida. Não sei se a livraria continua lá, nem se resta ali a (maldita) placa.

Neto de Salim Miguel

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