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Salim Miguel: Um livro da escuridão para a luz

No primeiro centenário do nascimento do saudoso e grande escritor brasileiro de origem libanesa, me pediram para analisar filosoficamente o seu livro Nur na Escuridão. Disseram-me que havia sido traduzido para o árabe com o título “de Koura ao Brasil, ida e volta”, porém este não tem relação com o título original, cujo elo dialético estaria baseado nas trevas e na luz.

Procurei esta tradução em vários lugares e não a encontrei; foi-me apresentada uma cópia em português. Eu tentei ler. Li várias páginas, mas não continuei. Como posso ler,  no meu português fraco, uma biografia que começa quando Salim Miguel e a sua família embarcaram no primeiro navio em busca de uma nova vida, num novo mundo, sobre o qual nada sabiam?

Ler um percurso de vida rico com suas tragédias e inspirações, com seus fracassos e sucessos, com suas tristezas e alegrias, sem possuir os meios linguísticos adequados, me parece extremamente superficial e mais próximo da artificialidade do que da criatividade literária.

Portanto, vivenciar o livro Nur na Escuridão e interagir com seus acontecimentos, no tempo e no espaço, com seus personagens e heróis sem ser o seu idioma, é como mergulhar em um mar profundo, misterioso em sua quietude e tempestuoso em suas ondas; é não lidar bem com seus segredos para nadar nele. Assim, a minha recusa em comentar o livro ou analisá-lo literária ou filosoficamente não se deve a uma arrogância e condescendência, mas sim a uma incapacidade de desconstruir os seus mistérios e explorar suas profundezas, atingindo os recônditos de seu abismo.

Pararia por aqui para dizer que Salim Miguel continua sendo para mim um segredo cujos esconderijos não consegui revelar?

Não convivi com Salim Miguel porque a história interpôs entre nós; e só li sobre ele através de suas entrevistas que me foram disponibilizadas. Não examinei os seus livros e não possuo os meios linguísticos que me permitiriam alcançar a espiritualidade de suas obras. O que fazer? Como posso atender à obrigação da memória e escrever algumas palavras sobre ele?

Sem coexistência, sem ideias, sem linguagem, sem diálogo. Disse a mim mesmo que só me restava voltar às suas entrevistas na imprensa, a algumas de suas declarações e aos títulos dos seus livros. Mas em vão, pois, a escuridão se interpôs entre mim e Salim, e a escuridão continuou sendo o elo entre nós dois.

Desisto e volto aos fatos de mãos vazias? Estaria decepcionando os seus fãs? Enquanto estava neste estado de dúvida, uma voz dentro de mim me falava: Isso não pode ser tudo. Deve haver algo que abra uma janela em que eu possa espreitar o mundo de Salim Miguel.

Novamente, o som torna-se silencioso e com ele são fechadas as janelas, são trancadas as portas, e o mundo de Salim Miguel torna-se, mais uma vez se, escuridão sem luz. Escuridão sem luz? Repeti essas palavras várias vezes. E na última vez, me perguntei: como podemos falar sobre escuridão sem luz?

Não existe uma relação dialética entre a luz e a escuridão? Existe luz sem escuridão e escuridão sem luz? As duas não precisam uma da outro?

Nessas últimas perguntas, eu parei, ponderei e voltei para trás, para o baú de minha memória, para anos conclusos, para o ano de 2018, quando o seu filho, Antônio Carlos Miguel, me visitou no gabinete do Consulado Geral. Naquele dia, depois de uma longa e interessante conversa, ele me contou que seu pai, Salim Miguel, vivia com os livros. Dia e noite, ele não abandonava os livros.

Ele só se lembrava do pai sempre com um livro nas mãos. Passou a maior parte da vida lendo e escrevendo, isolado do mundo, como se fosse um monge em um eremitério distante.

Naquele dia, as palavras de Antônio Carlos me fizeram imaginar Salim Miguel transformando-se lentamente, entre as páginas dos livros e as folhas de caderno, feito “Kafka”, num grande livro de centenas de páginas, que as juntou numa grossa capa na qual estava escrito um título em preto escuro, a cor da escuridão: “Salim Miguel”. O grande livro não estava mudo e falou comigo: “Os dias em que Salim passou alienado das alegrias da vida quotidiana, nada mais foram do que uma mensagem do seu destino. O destino do afastamento da vida através da leitura e da escrita, encarnando-se, depois de uma longa luta, num livro enorme, expressão de uma coleção de livros, que, para quem escreve, o traz de volta à vida, ainda que com outra roupagem e com uma nova aparência”.

O som do livro desapareceu da minha imaginação, enquanto outras palavras permaneceram ecoando dentro de mim. Esforcei-me muito para tentar reformulá-lo em uma ideia clara que todos pudessem entender. Entre uma tentativa e outra, voltei ao título de seu livro, Nur na Escuridão Voltei a admirá-lo e permaneci nesse estado de contemplação até ser sobrestado pela sua eloquência, cuja profundidade não havia percebido à primeira vista.

Mas agora que a sua eloquência foi revelada diante de mim com toda a sua beleza, percebi o segredo de Salim. O segredo de uma pessoa cuja escuridão se interpôs entre ele e a sua vida cotidiana entediante, e após a sua morte a luz o devolveu a um mundo autêntico, o mundo da literatura que ele amou até perecer nele.

É verdade que não li o livro Nur na Escuridão Também é verdade que não conheci Salim Miguel, o ser humano, mas agora já posso, assim como um grande número de pessoas, ler Salim Miguel, cujo título sombrio se tornou uma luz no livro.

Cônsul Geral do Líbano no Rio de Janeiro; é diplomata, escritor e professor de Filosofia; membro de Honra da Academia Líbano-Brasileira.

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