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Adeus às oliveiras? Mudanças climáticas afetam modos de vida e aprofundam desigualdades no Líbano

Foi em princípios de julho do ano passado, com a chegada do verão no Líbano, que senti na pele – e no suor – a confirmação de que já era impossível discutir como as mudanças climáticas “irão afetar” o país, dito assim no futuro. O ano de 2023[1], o mais quente em 125 mil anos de registro, teve temperaturas recordes em todo o globo e nos deu uma assustadora amostra grátis do que é viver em um planeta 1,5ºC mais quente do que a média dos níveis pré-industriais, o limite estabelecido pelo Acordo de Paris. Eventos extremos como tempestades, secas, inundações e ondas de calor varreram diferentes regiões[2], deixando um rastro de destruição, vidas perdidas e impactos socioeconômicos de longo prazo.

No Líbano, as altas temperaturas somadas à umidade, o que torna o desconforto térmico ainda maior, foram sentidas antes mesmo do pico do verão. Em um país ainda assolado pela crise econômica e enfrentando precariedades no fornecimento de energia elétrica – dificultando até mesmo o uso de ventiladores e aparelhos de ar-condicionado para amenizar o calor – não foi preciso mais do que duas noites quentes e úmidas no início do verão para ter certeza de que as consequências da emergência climática não “serão”, mas sim “são”, no presente, um imenso desafio por aqui.

A figura abaixo[3] dá a dimensão da aceleração do aquecimento do Líbano nas últimas décadas, indicando uma mudança de padrão e o aumento consistente nas temperaturas. As linhas representam a média anual da temperatura da superfície do ar no Líbano entre 1901 e 2022.

Mas os impactos são mais profundos que o desconforto causado pelo calor em condições ainda contornáveis. Como em todo o mundo, a crise climática no Líbano atinge de maneira mais intensa populações mais vulneráveis, acentuando desigualdades, comprometendo empregos, subsistência e modos de vida tradicionais. Atualmente, mais de metade da população do país vive na pobreza, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU).

O próprio calor não afeta a todos da mesma maneira: entre aqueles que podem pagar, mesmo com algum esforço, altas taxas de eletricidade e geradores particulares para ter acesso a refrigeração e as famílias vivendo em pequenas casas e apartamentos sem luz e ventilação, há um abismo que torna os contornos da crise do clima muito mais dramáticos para o segundo grupo. Some-se a isso os milhões de refugiados sírios e palestinos, que enfrentam condições ainda mais precárias em moradias populares e campos de refugiados, sem acesso livre à água, alimentação e direitos básicos.

Junto a isso, há os impactos na agricultura, meio de subsistência de milhões de trabalhadores nas famosas montanhas e áreas rurais do país. No início de 2023, uma pesquisa[4] publicada no periódico científico Nature Plants e reportada pelo site especializado Carbon Brief[5] mostrou que as oliveiras do Líbano, reconhecidas mundialmente por produzir azeite de alta qualidade, já estão ameaçadas pelas altas temperaturas.

Segundo a reportagem, as oliveiras ocupam quase um quarto de toda a superfície agrícola libanesa, e têm, em média, 150 anos. Coletando mais de 5 mil anos de dados sobre o pólen na cidade de Tiro, sul do Líbano, os pesquisadores concluíram que a produção de azeitonas dependeu de temperaturas de cerca de 16,9ºC para o crescimento saudável das oliveiras. As azeitonas dessa região, beneficiadas pelo clima típico, eram consideradas de qualidade superior, alto valor nutricional e sabor refinado.

Os pesquisadores alertam que, com o aumento consistente de temperaturas, haverá consequências prejudiciais para o crescimento das árvores até 2050. O sul do Líbano, especialmente, se tornará excessivamente quente para que as oliveiras possam crescer da forma conhecida há milênios pela humanidade, com floração e frutificação ideais.

Pelo menos desde a década de 2010, há um conjunto de pesquisas e esforços sistemáticos de levantamento de dados[6] apontando que as mudanças climáticas terão, no curto prazo, impactos negativos de diversas ordens na região do Levante. No Líbano, são frequentemente citados impactos ambientais, econômicos e sociais. Eventos extremos – como ondas de calor, incêndios florestais e aumento do nível do mar – afetam a saúde pública, moradias, produção agrícola em geral, a infraestrutura de transportes, suprimento de energia e a economia de maneira geral. O cenário traz ainda ameaças à biodiversidade e aos ecossistemas.

O escritório da ONU no Líbano reconhece que a crise do clima multiplica ameaças aos país[7], e reforça dados do Ministério do Meio Ambiente, que estimam uma queda de 14% no Produto Interno Bruto (PIB) libanês até 2040 como consequência das mudanças climáticas. A cifra pode chegar a 32% até 2080. Projeta-se ainda que o aumento de temperaturas e mudanças nos regimes de chuvas tornem os recursos hídricos escassos, afetando meios de subsistência da população e, especificamente, a produção agrícola.

Além disso, a ONU destaca diversos impactos à saúde pública: as mudanças climáticas elevarão as taxas de doenças infecciosas, de doenças e mortes por estresse térmico, causado por altas temperaturas, e também as taxas de desnutrição, em função da redução na produção agrícola. Tudo isso, cabe destacar, em um país em que o acesso à saúde é limitado. O sistema de saúde, sobretudo para a maioria da população que não pode pagar por seguros privados de alto padrão, é frágil e respondeu precariamente às demandas recentes incrementadas pela pandemia de Covid-19 e pela explosão do porto de Beirute, em 2020.

A gravidade da situação exige ações imediatas, contundentes e planejadas, que passem, inequivocamente, pelo enfrentamento à concentração de renda – e, consequentemente, ao modelo econômico historicamente voltado aos interesses das elites – e pela elaboração de políticas públicas que possam conter os efeitos sociais e ambientais da crise do clima. Segundo estudo da Universidade Americana de Beirute[8], esses efeitos devem ser abordados por diversos atores, capazes de adaptar soluções e atender às necessidades específicas das diferentes áreas do país.

Os pesquisadores recomendam investimentos em ações de governos locais e também voltados diretamente às comunidades, agricultores e indivíduos mais vulneráveis. Sugerem programas de capacitação e transferência de tecnologia específicos para agricultores e a promoção da diversificação de meios de subsistência, assim como a redução da degradação do solo através de agricultura “inteligente para o clima” e a ênfase em políticas de arborização e reflorestamento.

[1] Organização Meteorológica Mundial: ano de 2023 foi o mais quente já registrado. Disponível em: https://wmo.int/news/media-centre/2023-shatters-climate-records-major-impacts
[2] Eventos climáticos de 2023, por Observatório do Clima. Disponível em: https://www.oc.eco.br/o-ano-mais-fresco-do-resto-de-nossas-vidas/
[3] Levantamento de dados sobre clima para o Líbano em 2022, por Banco Mundial. Disponível em: https://climateknowledgeportal.worldbank.org/country/lebanon
[4] Mudança climática ameaça produção de azeite de oliva no Levante. Disponível em:  https://www.nature.com/articles/s41477-022-01339-z
[5] Mudanças climáticas podem tornar partes do Líbano muito quentes para a produção de azeite de oliva. Disponível em: https://www.carbonbrief.org/climate-change-could-make-parts-of-lebanon-too-hot-for-producing-olive-oil/
[6] Climate Change in Lebanon: Higher-order Regional Impacts from Agriculture. Publicação de Issam Fares Institute for Public Policy and International Affairs, American University of Beirut. Disponível em: https://www.aub.edu.lb/ifi/Documents/publications/working_papers/2013-2014/20140722_Higher_order_CC.pdf
[7]Artigo da coordenação das Nações Unidas no Líbano. Disponível em: https://lebanon.un.org/en/142648-climate-change-lebanon-threat-multiplier
[8] Mudanças climáticas, agricultura e meios de subsistência no Líbano. Disponível em:https://www.aub.edu.lb/ifi/Documents/programs/climate_change_and_environment/publications/20220426_lebanon_clear_study_climate_change_and_livelihoods.pdf
Leila Salim Leal é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura, professora universitária, repórter, redatora com experiência em técnicas de checagem e jornalismo digital. Contato: leilasalimleal@gmail.com

11 Comments

  1. Insha Allah que o Líbano seja coberto de Paz, Amor e Luz tendo todo seu povo e a agricultura das oliveiras abençoadas por nosso Allah.

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    • Que assim seja!

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  2. Infelizmente esta questão do aquecimento global e suas consequências é um caminho sem volta.

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    • Verdade, um dos maiores desafios da atual geração e da humanidade!

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  3. Uma perda para todos o fator “global”, características sendo ameaçadas.
    Nada será como antes!

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    • Pois é… paisagens, modos de vida e subsistência ameaçados, Muito preocupante

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  4. É lamentável que esta seja a atual situação climática e econômica do Líbano.

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    • Muito mesmo… que o Líbano tenha força e encontre, como tantas vezes, os caminhos de sua reconstrução

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  5. Grande parte da humanidade está resignada à crise climática, sem mobilização, mudança de hábitos e pressão política. A transição ecológica é urgente, não podemos ficar na mão de meia dúzia de empresas que querem criar e vender mais mercadorias como solução. Se no fim, toda essa luta for em vão, espero que sobre condições para as Oliveiras do Líbano ou os Ipês do Brasil repovoarem o Planeta…

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    • Exatamente isso! Esperando pela boa vontade dos que sempre lucraram com esse modelo de produção não teremos solução para a crise do clima. Obrigada pela leitura e pelo comentário!

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  6. Querida Leila,
    seu texto, tão necessário e atual, serve de alerta para que o Líbano e o mundo reflitam seriamente e passem a agir de modo a adotarem políticas de prevenção e adaptação que venham a proteger a vida das pessoas e a natureza, reduzindo significativamente os riscos ambientais.
    Estamos vivendo uma catástrofe ambiental que se traduz em uma catástrofe social, gerada por um sistema perverso que coisifica o homem e a natureza.
    As pessoas mais impactadas pelas crises causadas pelo aquecimento global, pelas mudanças climáticas, são as mais vulneráveis, por outras condições, ampliando, assim, substantivamente as desigualdades.
    Precisamos mudar este cenário!
    Muito obrigada pela relevante contribuição!
    Que venham outros artigos seus!
    Um abraço saudoso,
    Cristina Ayoub Riche

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