Nasci com esse nariz.
Grande. Largo. De descendência libanesa. Narinas amplas, capazes de hospedar um ecossistema próprio. Fauna e flora. Bicanca protuberante e sensível.
O pai cheirava a areia, sal e mar. Eu mal sabia andar e ele já me levava à praia todos os dias de manhã cedo. Morávamos a dois quarteirões apenas da orla.
Cheiro de alegria.
Caminhadas, rolar nas dunas, correr das ondas, buracos para encontrar Tatuí, ioga e meditação. Cheiro de harmonia.
O ponto alto, era vê-lo enterrar as mãos no chão e puxar um punhado de areia molhada que ele misturava com a seca para esculpir uma bola de areia perfeita. Pesada. Lisa. Gigante aos meus olhos. Eu oferecia minhas pequenas mãos, ansiosa para carregar a insustentável escultura que logo desmancharia no ar. Ele ria e eu pedia mais. Quando fiz seis anos, foi meu pai que se dissolveu como uma bola de areia. Cheiro de pai interrompido.
A mãe tinha o perfume das letras. Dos livros. De literatura. De sala de aula.
Cheiro de luta, de burburinho de universidade, de protestos pela democracia. Cheiro de vida. Professora, viúva, quatro filhos, milhares de alunos, amigos e… parentes narigudos. Cheiro de casa cheia. Faltava dinheiro, mas não faltava comida.
Cheiro de mil e uma noites.
Oito mil setecentos e sessenta dias depois, eu tinha vinte e quatro anos e minha casa passou a ter cheiro de éter, de hospital, de quimioterapia e desespero.
Minha mãe, a estrutura da família, estava prestes a desabar.
Metástase no esqueleto. Haja morfina para tantos anos de dor.
Três ou quatro noites antes de sua morte, sempre às dezoito horas, um perfume diferente invadia o quarto. Rezávamos Ave Maria diante dela.
O senhor é convosco.
A irmã, com olhos arregalados, dizia com absoluta certeza:
“É o cheiro do papai! É o cheiro do papai.”
Bendito seja.
Atônita, eu inspirava profundamente tentando entender de uma vez por todas o que há entre o céu e a terra.
Bola de areia, beira do mar, tatuí. Era mesmo o cheiro de pai salgado.
Rogai por nós.
Ela faleceu. O perfume se dissolveu.
Imaginei o pai, em pé, diante dela, sorrindo e de braços abertos. Veio buscá-la.
Partiram. Amém.
Meu nariz jorrou lágrimas.
O tempo passou, o mato cresceu ao redor. Vida que segue com novos odores.
E o nariz continua crescendo.
14 Comments
Que bela analogia, lembranças que nunca morrem…cheiro de eternidade!
Obrigada. Verdade, são lembranças eternas.
Maravilhosa analogia, como disse Alice Boulos “lembranças que nunca morrem…”
Que bom que gostou. Obrigada.
Que lindo !!! Também tenho saudades do meu pai. Ele nasceu no Brasil, mas era um libanês verdadeiro, foi um pai maravilhoso, inesquecível, não tem dia em que algum de nós não se recorde dele. Era lindo fisicamente e de caráter !!! Tenho orgulho da minha ascendência paterna. Adorei seu texto, parabéns 🙏
Obrigada. São lembranças muito valiosas, nossas raízes, né? Que bom que gostou do conto.
Que lindo, adorei Mariana. Parabéns! Como é bom essas histórias com os nossos pais.
Obrigada, Gislainy Sim, são nossas raízes. Que bom que gostou do conto.
Mariana, que lindeza de escrita!
Em um fio amorosamente tecido de palavras, você foi capaz de nos tirar o fôlego e nos remeter ao centro da nossa família, a buscar o pai que já nos virou estrela e a olhar para a mãezinha, tadinha, sofrendo os efeitos do Alzheimer com um olhar lindo de quem ama muito os filhos, ainda que confundindo emoções e palavras, e buscando as coisinhas que a fizeram feliz (ou mais feliz!) um dia.
Abraço forte em você e na família!
Obrigada, Mauro. Sim, envelhecer é um desafio. Espero que sua mãe tenha qualidade de vida sempre. Que bom que gostou do texto. Valeu.
Texto lindo e comovente! Entupo meu narigão sempre q tenho o privilégio de lê-lo! Parabéns, parabéns e parabéns! Mamãe e papai devem estar muito orgulhosos de vc, irmã querida! 🙌🏽🥰👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽❤️😘
Irmã querida, parceira nessas lembranças e na vida. Te amo. Obrigada pelo incentivo 🌹
Mariana querida,
quanto encantamento neste texto que nos faz chorar de saudade e nos remete a várias lembranças:
Da nossa tão amada Samira que, de onde estiver, estará aplaudindo de tanto orgulho!
Dos nossos ancestrais que nos deixaram um legado de amor e de resiliência!
Dos nossos laços plenos em afeto e generosidade, da nossa memória que nos une e apura as nossas narinas, fortalecendo as nossas raízes.
Da nossa conexão profunda com o Líbano, mesmo que inconscientemente!
Seu texto é mágico, intenso, potente, eu me emocionei muito aqui, viajei ao Líbano dos meus avós, senti o aroma das montanhas, das rosas, da flor de laranjeira, do grão de bico, da za’atar, dos cedros e das oliveiras.
E quero manter o meu nariz avantajado como o seu, tenho muito orgulho deles!
Muito obrigada pela colaboração primorosa!
Cristina Ayoub Riche
Cristina, querida, muito obrigada pelo seu amor e incentivo. Você também me emociona. Nossa amizade, que herdei da minha mãe, é um privilégio que quero ter sempre. Parabéns por essa revista feita com tanto empenho e amor pelas nossas raízes. Seguimos juntas❤️