1982 foi um ano fecundo para o escritor e jornalista Slimane Zeghidour, argelino radicado em Paris desde a juventude. Além de lançar em nosso país o livro A poesia árabe moderna e o Brasil, pela Brasiliense, ele fez uma imersão muito mais abrangente na obra intitulada La poésie arabe moderne entre l’Islam et l’Occident, publicada na França pela Karthala.
Corria o ano de 2020 quando, como de costume, fui dar uma garimpada no sebo Red Star no bairro de Pinheiros em São Paulo e achei esse livro dele em francês. Como via Slimane frequentemente fazendo suas brilhantes análises geopolíticas na TV5 Monde, comprei a obra sem pestanejar e a leitura me deixou maravilhada por sua profundidade e finesse de raciocínio.
Veio então a clausura imposta pela pandemia de Covid-19 e, surpreendentemente, houve muita demanda para traduções e revisões, que são meu ganha-pão e atividades que faço com paixão. Vale frisar que o amor pelos livros está na base da opção por trabalhar no frágil mercado editorial no Brasil, já que o país tem índices vergonhosos em relação ao hábito da leitura. Ocupando o 52º lugar no ranking internacional do Piris (Progress in International Reading Literacy Study) cujos dados foram coletados em 2021 e 2022, o Brasil também fica na sexta pior posição no ranking de habilidade de leitura. Embora 52% dos brasileiros tenham o hábito de ler livros (em média, 4,9 livros por ano por habitante), apenas 16% — principalmente mulheres das classes B e C –adquiriram um livro entre 2022 e 2023. Além disso, o vício em internet e redes sociais fez o país perder aproximadamente 4,6 milhões de leitores nos últimos anos.
Pois bem, apesar desse quadro desfavorável, resolvi traduzir La poésie arabe moderne entre l’Islam et l’Occident nas horas vagas. O mergulho nas mais de 300 páginas do livro preencheu meu isolamento social com descobertas surpreendentes e momentos de epifania.
Os desafios da tradução encamparam pesquisas sobre etimologia, história, mitologia e religião, e a transliteração de termos e nomes próprios em francês para português. Além disso, atualizei os dados biográficos dos 37 poetas de diversas vertentes que figuram no capítulo final – As Aventuras de Uma Voz –, com exemplos de suas criações. O destaque maior é dado ao poeta libanês Khalil Gibran, cuja obra ímpar inspirou a chamada Geração Beat e continua cativando as novas gerações, porém esse capítulo também enfoca Adonis, Mahmoud Darwich, Saïd Akl e a pioneira poeta iraquiana Nazik Al Malaïka.
Graças a esse livro, aprendi sobre as imbricações dos mitos fundadores das três religiões monoteístas, os modos de vida de beduínos nômades, aldeões e elites no poder no mundo árabe, o convívio pacífico entre pessoas de diferentes credos na Andaluzia, conflitos sangrentos, repressões, desinteligências entre o Oriente e o Ocidente, as injustiças inomináveis (que inacreditavelmente perduram até hoje) impostas aos palestinos e o peso sufocante da tradição. Compreendi também a posterior necessidade pela busca de novos ares e oportunidades no Novo Mundo, onde sucessivas levas de árabes de diversos países encontraram a sonhada liberdade para experimentar novas formas de se expressar, notadamente nos Estados Unidos e no Brasil.
Poucas obras exibem tamanho fôlego intelectual no que se refere à evolução da poesia árabe, que até o século XX foi o principal meio para esse povo multifacetado desnudar sua alma, dores e anseios. Certamente, trata-se de uma obra de referência para estudiosos, interessados na riquíssima cultura árabe e a grande comunidade árabe no Brasil.
Em 2022, por intermédio de Filipe Farhat, neto do lendário poeta Elias Farhat, finalmente tive contato com Slimane Zeghidour e relatei minha empreitada solitária com sua obra monumental de 1982. Surpreso e emocionado, ele leu a tradução e a aprovou integralmente, inclusive se dispondo a escrever um prefácio para a edição brasileira. Desde então, ele, eu, Filipe, Terezinha Féres-Carneiro e Luciana Viégas formamos uma espécie de força-tarefa para viabilizar o projeto.
Sua forte ligação com o Brasil começou em Argel, com a chegada de um grupo de exilados da ditadura brasileira em 1965. Esse contato despertou seu interesse pela música e a cultura brasileiras, a ponto de ele aprender o idioma. Como repórter internacional, Slimane também esteve várias vezes no Brasil, onde tem amizades sólidas com Raduan Nassar, as professoras universitárias Terezinha Féres-Carneiro e Cristina Ayoub Riche, entre outros intelectuais.
Apesar de sua relevância, a edição brasileira de La poésie arabe moderne entre l’Islam et l’Occident ainda não se concretizou. Mas agora, com o apoio da Academia Líbano-Brasileira de Letras, Artes e Ciências, na qual tenho Samir Barghouti como padrinho, acreditamos que em breve esse projeto editorial irá se tornar uma realidade. Portanto, caros leitores, aguardem os próximos desdobramentos da saga desse livro atemporal que deveria fazer parte da biblioteca de qualquer pessoa que aprecie a contribuição civilizatória do povo árabe para a humanidade.
SOBRE O AUTOR
Nascido na região montanhosa da Pequena Cabília, na Argélia, o escritor e jornalista Slimane Zeghidour é redator-chefe e editorialista na TV5 Monde há 20 anos. Grande repórter, cobriu durante um quarto de século a América Latina, o Oriente Médio, a Rússia e a Ásia Central para Le Monde, Le Nouvel Observateur, Géo, Télérama, La Vie e El País. Registrou também in loco a expansão dos fundamentalismos religiosos do Brasil ao Uzbequistão, passando pela Argélia, Palestina, Egito, Irã e Sudão. Ministrou cursos de geopolítica das religiões na Sciences-Po (Menton e Poitiers) e na Escola Superior de Jornalismo Celsa da Sorbonne. Os primeiros brasileiros que conheceu foram os 40 exilados políticos, incluindo Miguel Arraes, que receberam asilo em Argel a partir de 1965. Desde então, tem grande interesse pelo Brasil, do qual conhece a história, a literatura e a música e inclusive a língua. Esteve com Lula em 1981 na casa de Frei Betto e é amigo próximo do escritor Raduan Nassar. Conferencista, participou de seminários nas universidades estadunidenses de Berkeley e Princeton, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, na Universidade Effat de Jeddah, na Universidade Saint-Joseph de Beirute e nas faculdades de Jornalismo de Argel, Ramallah e Belém. Autor de várias obras, lançou mais recentemente Sors, la route t’attend, um relato autobiográfico sobre sua infância tumultuada na Pequena Cabília, durante a guerra da Argélia.
38 Comments
Muito interessante esta apresentação do escritor, assim como outros textos do Blog.
Sucesso na empreitada!
Parabéns, Thais Costa, pelo texto sobre o escritor argelino! Nós que convivemos com os vários ” povos árabes” temos sede de conhecer melhor sua cultura e sua produção literária. Vou torcer pela publicação do livro que você tão amorosamente traduziu!
Que maravilha, Thais! E parabens pela luta! Sao pessoas apaixonadas por livros como voce que fazem a literatura permanecer viva!
Que história maravilhosa, típica de um conto árabe! Vc desvendou e também teceu mundos em pouquinhas laudas de deliciosa leitura. Esse livro há de ser editado no seu Português !
Que história maravilhosa, típica de um conto árabe! Vc desvendou e também teceu mundos em pouquinhas laudas de deliciosa leitura. Esse livro há de ser editado no seu Português !
A envolvente apresentação de Slimane Zeghidour e sua obra pela jornalista Thais Costa nos faz desejar ter a edição de “La poésie arabe moderne entre l’Islam et l’Occident”, editada em português, em mãos. Fico torcendo para que isso ocorra logo.
Obrigado pelo seu comentário e pela leitura, Marília.
Thais, seu texto é maravilhoso e essa sua empreitada em traduzir o livro merece todas as comemorações! Obrigada por sua paixão pela literatura! Nós é que ganhamos.
Artigo maravilhoso, a jornalista Thaís Costa com certeza deixou todos ansiosos e na torcida para a realização do projeto da tradução do livro. Viva os livros físicos! Fiquei impressionada com as estatísticas sobre leitura no Brasil. Muito triste!
História maravilhosa, cativante apresentação!
Valeu!!! Muito interessante.
Texto impecável, Thais Costa. Que esta empreitada seja bem sucedida e possamos saborear mais um tanto de tão rica cultura!
Thaïs, obrigada pelo artigo no blog da Libanus que nos informa sobre ter completado a tradução de La poésie árabe moderne entre L’Islam et L’Occident. Parabéns pelo empreendimento corajoso, amoroso e cuidadoso!
Será oportuno que a obra seja publicada em breve, para que possamos expandir os nossos horizontes literários no momento onde precisamos reconstruir diálogos entre mundos.
Tenho imensa admiração pelo teu trabalho de tradução esmerado, dedicado e delicado.
Agradeço a todos que fizeram comentários tão gentis e encorajadores sobre meu artigo. É uma alegria ver que vocês fazem parte da resistente tribo de bibliófilos e certamente concordam com o que dizia Jorge Luis Borges: “Creio que uma forma de felicidade é a leitura”.
Salve, Thais: li A poesia árabe moderna e o Brasil do Slimane e aguardo ansioso este novo livro. Temos pouco material em Português sobre está interessante cultura. Parabéns!
Thais, muito sucesso para você e para o Blog da Libanus.
Publicar livros é uma luta enorme, Deus e o Diabo sabem como é difícil fazer um livro, os livros são pra mim a resistência mais democrática da sociedade. Os livros são documentos e falas de nossos pensamentos. Parabéns a resistência de todos vocês!
Thais, acabo de ler seu artigo. Muitas informações novas e instigantes para mim. Cheio de estilo e beleza! Parabéns!!!
Thaís, que delícia conhecer seu encontro com a poesia islâmica e com a escrita do argelino Slimane Zeghidour (eu não o conhecia). Seu texto é leve e denso (ao mesmo tempo), sensível e sedutor, nos oferece uma pequena amostra do mundo imenso (quase desconhecido) que o livro traduzido vai dar a ler. Parabéns pelo belo artigo e que a publicação venha logo!!
Thaïs muito interessante o seu artigo.
Tomara a publicação do livre sai logo.
Cara Thais:
Duas novidades para mim. A revista em si e saber que você se interessa pela cultura árabe, o que certamente foi facilitado pelo seu conhecimento de Francês.
O que não foi novidade para mim foi a qualidade do texto. Parabéns!
Muito bonito o texto da Thais e muito importante esse trabalho dela. Torcendo aqui para que o livro seja editado.
Um artigo muito rico Thaís. Que trabalho legal, com informações da cultura árabe,tão rica e potente.
Torcendo para a edição do livro em nosso país, tão carente de amor, leitura e compreensão de texto.
Thaís, obrigada pela introdução histórica, via Libanus , do autor Slimane e sua maravilhosa obra sobre a cultura, bem como a poesia árabe moderna, seu lugar na história do Oriente e sua inserção no mundo ocidental! Estou também , convencida da relevância de seu trabalho , que está em curso desde a tradução e que agora, se transforma na batalha para publicar aqui no Brasil mais uma obra de Slimane. Parabéns !
Parabéns Thaís Costa!
Aguardo ansiosamente a publicação do livro dessa cultura incrível.
👏🏻👏🏻👏🏻 muito bom!
Thaís Costa, interessantíssimo seu artigo!
Torcendo pela publicação do livro!! 👏🏻
Thaís Costa, interessantíssimo seu artigo!
Torcendo pela publicação do livro!! 👏🏻
Sou entusiasta da difusão da cultura árabe. Daí, a vontade e a torcida para termos mais livros sobre a sua poesia. Obrigada, Thais Costa, que a publicação seja breve!
Parabéns a Thaís costa, ótimo livro ansiosa pela publicação👏🏻
Fiquei entusiasmado em saber que vamos desfrutar da delicada poesia árabe, sempre tão profunda e bela. Nossa cultura precisa ser cantada em prosa e verso nesta tão difícil atualidade que experimentamos. Tenho certeza que você vai conseguir concretizar a publicação, Tais Costa.
Aguardamos ansiosamente a edição e publicação desta “jóia rara” ao tempo em que os parabenizamos pelo Blog
Deve ter sido incrível mergulhar nesse universo! Tomara que consigam publicar logo a edição brasileira.
Deve ter sido incrível mergulhar nesse universo! Tomara que consigam publicar logo a edição brasileira.
Uma dica para os interessados: a Estante Virtual ainda tem exemplares do livro “A poesia árabe moderna e o Brasil”, que o Slimane Zeghidour lançou pela saudosa Editora Brasiliense.
Estimada Thaïs Costa,
Quanta alegria contar com o seu relevante artigo, que me trouxe belas lembranças!
Lembrança do querido Slimane Zeghidour, que participou, com a palestra: Influência do modernismo brasileiro na poesia árabe moderna – uma Nova Andaluzia, do I Congresso Internacional da Faculdade de Letras, da UFRJ, realizado no ano de 1987, e do qual tive a honra de ser a Vice-presidente da Comissão Organizadora.
A abordagem de Zeghidour, no referido Congresso, tratava dos intelectuais árabes que, por força do domínio turco, foram obrigados a emigrar na 2ª metade do século XIX. No Brasil, surgiu um grande centro de produção poética, denominado “Nova Andaluzia”. Os poemas publicados tiveram repercussão no Mundo Árabe e influenciaram como estética a literatura escrita em Beirute e Damasco. A proposta do trabalho foi a de traçar as linhas que determinaram essa influência e suas consequências no desdobramento da literatura célebre do renascimento árabe (Al Nahda).
Aqui na torcida para a publicação da tradução que você fez da importante obra de Slimane Zeghidour La poésie arabe moderne entre l’Islam et l’Occident, publicada na França, pela Karthala.
Agradecemos a sua colaboração com o blog !
Que venham outros artigos!
Abraços fraternais,
Cristina Ayoub Riche
Cristina, fiquei emocionada com suas palavras e lembranças despertadas pelo artigo. Sem dúvida, o público em geral ainda desconhece que o Brasil foi um epicentro para a evolução da poesia árabe, o que justifica a publicação do livro mais aprofundado do Slimane sobre o tema.
Já estou preparando dois artigos para as próximas edições do blog.
Grande abraço e boa semana.
Uma espetacular aventura literária: não consigo imaginar outro adjetivo a respeito da profunda imersão que a jornalista Thaïs Costa fez sobre o livro “La poésie arabe moderne entre l’Islam et l’Occident”, do escritor e jornalista argelino Slimane Zeghidour.
Renomada tradutora do inglês e francês para o português, Thaïs, inconformada com o fato de “La poésie árabe…” não ter sido ainda traduzido para os leitores brasileiros se jogou nessa aventura em um mergulho em suas mais de 300 páginas. Passo a ela a palavra: Os desafios da tradução encamparam pesquisas sobre etimologia, história, mitologia e religião, e a transliteração de termos e nomes próprios em francês para português. Além disso, atualizei os dados biográficos dos 37 poetas de diversas vertentes que figuram no capítulo final.
Santo Deus! Que dedicação! Ou seria, que determinação! Mas na verdade para ela, antes de tudo, foi uma aventura muito prazerosa. Fala Thaïs: Graças a esse livro, aprendi sobre as imbricações dos mitos fundadores das três religiões monoteístas, os modos de vida de beduínos nômades, aldeões e elites no poder no mundo árabe, o convívio pacífico entre pessoas de diferentes credos na Andaluzia, conflitos sangrentos, repressões, desinteligências entre o Oriente e o Ocidente, as injustiças inomináveis (que inacreditavelmente perduram até hoje) impostas aos palestinos e o peso sufocante da tradição. Compreendi também a posterior necessidade pela busca de novos ares e oportunidades no Novo Mundo, onde sucessivas levas de árabes de diversos países encontraram a sonhada liberdade para experimentar novas formas de se expressar, notadamente nos Estados Unidos e no Brasil.
Poucas obras exibem tamanho fôlego intelectual no que se refere à evolução da poesia árabe, que até o século XX foi o principal meio para esse povo multifacetado desnudar sua alma, dores e anseios. Certamente, trata-se de uma obra de referência para estudiosos, interessados na riquíssima cultura árabe e a grande comunidade árabe no Brasil.
Muito bem! Traduzida, a versão em português foi apresentada ao próprio autor que a aprovou integralmente. E se assim o fez, foi por uma razão que a própria Thaïs nos explica: Slimane Zeghidour tem uma forte ligação com o Brasil que começou em Argel, com a chegada de um grupo de exilados da ditadura brasileira em 1965. Esse contato despertou seu interesse pela música e a cultura brasileiras, a ponto de ele aprender o idioma.
Thaïs e um grupo de intelectuais que a acompanham nessa jornada tentam, já há um bom tempo, viabilizar o capítulo final: a edição brasileira do livro. E num cenário de fechamento de livrarias e de queda do número de leitores no país, com muitas dificuldades. Mas aos poucos as barreiras estão sendo vencidas. O grupo que trava essa batalha comemora agora o apoio da Academia Líbano-Brasileira de Letras, Artes e Ciências.
Aguardemos então: nesse momento de tensões tão graves no Oriente Médio, quem sabe, em breve, poderemos nos deleitar com “A poesia árabe moderna entre o Islã e o Ocidente” e reavaliar a imensa contribuição civilizatória do povo árabe para a humanidade.