Quando estou escrevendo um novo livro, como agora, não leio nada novo para não perturbar meu processo criativo. Porém, como não posso parar de ler, pego alguma obra das que me marcaram para sempre.
Uma delas, do qual não conheço tradução em português (talvez tenha em árabe) se chama: Les chênes qu’on abat, ou seja, em versão livre: Os carvalhos que derrubamos. Seu autor, André Malraux, já nos conquista na epígrafe, transcrevendo uma estrofe de Victor Hugo:
Oh! Quel farouche bruit
Font dans le crépuscule
Les chênes qu’on abat
Pour le bûcher d’Hercule!
Sim, se houvesse uma mitologia francesa, De Gaulle poderia assumir o papel do herói heleno, defensor da sua terra e dos fracos e oprimidos.
O livro narra a última visita de Malraux a De Gaulle, então com oitenta anos e afastado do poder. O encontro se dá em Colombey-les-Deux Églises, no manoir que o General, que não fez fortuna, herdou dos ancestrais. É inverno, e a neve cai mansamente sobre os telhados e caminhos.
Passados muitos anos dos fatos ocorridos, mortos ambos os personagens da narrativa, impressiona ainda mais o diálogo de dois homens que chegaram ao alto da montanha e, de lá, contemplam o vale da vida.
Juntos pela última vez, o ex-Presidente da França e seu antigo Ministro da Cultura recordam o passado e procuram adivinhar o futuro. Conscientes de que nunca mais subirão ao palco do poder político, repassam os principais atos e atores que marcaram o século XX: Churchill, Stalin, Hitler, Mao Tsê Tung, Kennedy são analisados e decifrados com nostalgia. O diálogo é como um vinho velho cujo sabor está no líquido e na garrada empoeirada.
De Gaulle foi um dos poucos estadistas do século passado capaz de atrair multidões nos cinco continentes. Símbolo da luta universal contra o nazismo, uma de suas respostas a Malraux define a rara capacidade de rir de si mesmo:
– Por que fui tão aplaudido nos países de cultura espanhola? Talvez pela minha semelhança física e espiritual com Dom Quixote.
Porém, na realidade, embora quixotesco em muitas atitudes, como ao dar vivas ao Québec libre como convidado oficial do Canadá, De Gaulle não viveu como um sonhador. Homem de ação, jamais se preocupou em elaborar teorias políticas, e sim em colocá-las em prática. Por essa razão, não existe gaullismo sem De Gaulle.
E talvez François Mitterrand, que foi por ele derrotado nas eleições de 1965, tenha sido mais tarde o legítimo herdeiro do velho General. Mitterrand criou um novo pacto social em seu país, não se dobrou ao capitalismo nem ao comunismo, e ajudou a consolidar a Comunidade Econômica Europeia, que De Gaulle iniciou com o Mercado Comum Europeu. Lembro que, ao reunir-se com o Presidente da Alemanha, deixando de fora a Grã-Bretanha, Le Général sofreu enormes críticas, por unir-se ao inimigo, abandonando o aliado que o acolhera durante a guerra. A recente evasão dos britânicos da Comunidade Econômica Europeia, prova que a razão estava com De Gaulle, ao dizer: Os ingleses vivem numa ilha que não faz parte da Europa.
André Malraux recolheu alguns pensamentos e opiniões do General De Gaulle que falam por si mesmos:
– A coragem consiste em ignorar o perigo.
– A vida não se resume em trabalhar. Apenas trabalhar nos deixa malucos.
– Kennedy falou-me de Lincoln de uma maneira que me impressionou. Ele esperava imitá-lo na vida, mas só o imitou na morte.
– Che Guevara? Parece um personagem de romance.
– Dizem que eu fui ditador. Mas quando se ouviu falar de um ditador que sempre se elegeu por voto direto e secreto, nunca manipulado, deixando-se atacar pela imprensa?
– Os franceses costumam hesitar entre seu desejo de privilégios e o gosto pela igualdade. Mas o meu maior adversário, e também o da França, sempre foi o dinheiro.
– Buscar a felicidade sem agir, é uma tarefa de imbecis.
Já no fim do encontro, por incrível que pareça, De Gaulle afirmou a Malraux, que o próximo milênio será do Terceiro Mundo, em especial da América Latina. Por enquanto, estamos ainda muito mal, mas temos alguns séculos pela frente. Resta-nos agir em busca disso, se não formos imbecis.
Voltando para casa naquele entardecer de muita neve, Malraux pensa que De Gaulle, apesar do seu ostracismo, ainda é um homem cheio de esperança. E, concluindo o livro, cita Platão para explicar esse sentimento:
– De que te serve, Sócrates, aprender a tocar essa lira, sabendo que estás condenado, que logo vais morrer?
– Para tocar a lira antes de morrer.
6 Comments
Muito interessante!
De Gaulle, fiel ao que acreditava, patriota, sincero e autentico.
Estimado confrade Alcy Cheuiche,
foi com muita satisfação que recebemos o seu texto primoroso intitulado: De Gaulle e Malraux: O último encontro.
André Malraux merece ser sempre lembrado, ele que foi um homem de reflexão, um ativista, um político, um dos romancistas mais importantes do século XX e um dos mais conhecidos combatentes contra o fascismo e o nazismo na Europa, nas décadas de 30 e 40.
A convite do então presidente francês Charles de Gaulle, Malraux foi o primeiro ministro de Assuntos Culturais da França, entre os anos de 1958 e 1969. Nessa qualidade, ele concebeu a ideia de “centros culturais” e de “casas de cultura”, cujo propósito era democratizar o acesso à cultura.
Com o intuito de fazer da cultura um elemento administrado pelo Estado, ele adotou uma política voltada para as massas, que popularizou o cinema, a música e os museus.
Autor de “A Condição Humana”, entre outras obras-primas, além de sua importância literária, merece destaque sua iniciativa ao propor as leis que até hoje garantem a dignidade de monumentos e prédios históricos da França.
E vale observar que, em 1959, quando Malraux esteve em Brasília, chamou aquela cidade de “capital da esperança”.
Receba os nossos agradecimentos e as nossas fraternais saudações,
Cristina Ayoub Riche
Quando meu avô veio da Síria, através do Porto de Marseille, na França, embarcou num navio que ia de lá para Dacar, e da capital do Senegal para o Rio de Janeiro, onde desembarcou em 1914. Dizia sempre que viajou com o General de Gaulle, no trecho que ia de Marseillle ao Senegal.
Muito interessante esse artigo sobre o General De Gaulle. Eu tinha uma outra impressão sobre esse cavalheiro que conseguiu dar um impulso em França. Comecei a pesquisar sobre seus atos, fatos e feitos e, minha admiração só aumentou.
Quanto ao Senhor Alcy Cheuiche [Escritor], tenho também enorme admiração por seus feitos inclusive, li três de seus livros: – João Cândido, O Almirante Negro – 171 pgs, O Velho Marinheiro, a História da Vida do Almirante Tamandaré – 456 pgs e Sepe Tiaraju, O Indio, O Homem, O Herói – 065 pgs. Muitos parabéns a esse senhor que de maneira modesta contribuiu para a melhora cultural desse país aqui.
Atenciosamente
João Batista Piazza – LONDRINA – PARANÁ
A propósito de assuntos culturais, venho expressar aqui minha enorme admiração pelo ex-prefeito de São Paulo e ex-ministro da Educação e hoje Ministro da Fazenda dessa país aqui, o Sr. Fernando Haddad que como descendente de libaneses e escritor publicou um importante livro intitulado O TERCEIRO EXCLUIDO (Contribuição Para Uma Antropologia Dialética) onde, mobiliza os principais debates contemporâneos da biologia, da antropologia e da linguística e apresenta novas bases teóricas para a emancipação humana. Parabéns a esse senhor pela interessante obra!
João Batista Piazza – LONDRINA – PR