No remake em cartaz da novela Renascer, Almir Sater interpreta Rachid, personagem carismático e com pitadas de humor, que volta e meia esclarece a seus interlocutores: “Nóis num é turco, nóis é libanês”. Com isso, ele presta o serviço de desfazer um preconceito ainda arraigado no Brasil de tachar todos os árabes e seus descendentes de ‘turcos’. Os turcos eram literalmente os opressores de sírios e libaneses, então imaginem o quanto isso é ofensivo.
Como esclarecimento para os leitores que não têm origem árabe, esse equívoco teve origem na época da primeira onda de imigração para o Brasil que se estendeu de 1880 até 1900. Por razões econômicas, políticas e religiosas, esses povos deixaram suas terras usando passaportes emitidos pelo antigo Império Otomano que dominava o Oriente Médio. Segundo a cientista social Mayra Poubel, foi em 1880 que o primeiro navio saiu do porto de Beirute rumo ao Brasil, e os principais destinos dos libaneses foram São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pará e Goiás. Entre 1893 e 1926, eles eram classificados como sírios, e só a partir daí passaram a contar com passaportes libaneses.
Um fator curioso que influenciou muito a leva migratória inicial foi a visita de Dom Pedro II ao Líbano em 1876, com direito a uma passagem por Zahlé, conforme relata Patrício Bentes. A rua principal dessa cidade foi então rebatizada com o nome Brasil, o que certamente plantou a semente do sonho de uma vida melhor no desconhecido país sul-americano, onde muitos acreditavam ser mais fácil obter um visto do que nos Estados Unidos.
Ao contrário dos imigrantes europeus que foram trabalhar na área rural, os sírios e libaneses se estabeleceram em cidades nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pará e Goiás desenvolvendo atividades comerciais e, posteriormente, abrindo os próprios negócios.
Com o final da I Guerra Mundial em 1918 e até 1950, mais libaneses chegaram ao Brasil, que passava por uma fase de industrialização e urbanização. Nesse período, dirigiram-se para a Amazônia, em pleno ciclo da borracha, e para o Sul, que vivia o ciclo do café e uma época de prosperidade. Eles resistiram à crise econômica de 1929 abrindo indústrias e pontos comerciais.
Os anos 1930, porém, foram bem difíceis, pois o movimento integralista comandado por Plínio Salgado tentou impedir a vinda de mais libaneses ao país, sob o argumento disparatado de haver o risco de uma islamização do Brasil. Com a rudeza típica de movimentos reacionários, essa corrente católica radical fazia vista grossa ao fato de que a maioria dos imigrantes árabes era formada por cristãos que tinham ideias progressistas e haviam combatido a cruel tirania turca. As campanhas islamofóbicas e racistas na era Vargas reforçavam que os “turcos” mascates eram sinônimo de ganância, trapaça, exploração e dissimulação, e que todos dessa “raça” eram comedores de criancinhas, fanáticos e devassos.
ETAPAS DA ACLIMATAÇÃO NO BRASIL
Em seu livro incontornável Brimos – Imigração sírio-libanesa no Brasil e seu caminho até a política (Fósforo, 2021), o jornalista e escritor Diego Bercito aponta que entre essas levas de imigrantes havia agricultores, pequenos comerciantes e mascates, assim como pessoas mais abastadas e com diplomas universitários.
Nos tempos em que os meios de comunicação eram precários, os lendários caixeiros-viajantes, em sua maioria jovens solteiros, também levavam e traziam as notícias entre os rincões do Brasil. Em São Paulo, os comerciantes árabes se agruparam na rua 25 de Março desde 1885, ao passo que no Rio de Janeiro se concentraram na rua da Alfândega, lançando novidades como as vendas a prestações e as liquidações.
Paulatinamente, as remessas de dinheiro para o Líbano foram diminuindo, e os negócios, passados de pai para filho, fatores que propiciaram a fixação da colônia libanesa. À medida que prosperavam, os imigrantes procuravam proporcionar a melhor educação a seus filhos, e o ingresso em faculdades trouxe mais integração com jovens das elites brasileiras e, posteriormente, a presença marcante dos descendentes sírio-libaneses na cena política, social e cultural do país. Em paralelo, a comunidade árabe convivia estreitamente e mantinha muitos veículos de imprensa, clubes e igrejas.
Em seu livro A poesia árabe moderna e o Brasil (Brasiliense, 1982), Slimane Zeghidour relata um dado impressionante: entre 1890 e 1940, havia cerca de 394 jornais, revistas e periódicos árabes no Brasil, superando largamente o número de veículos de imprensa nos 23 países e territórios árabes espalhados pelo Norte da África e a Ásia Ocidental.
Atualmente, o Brasil abriga a maior comunidade libanesa do mundo, estimada entre 7 milhões e 10 milhões de nacionais e de seus descendentes, sendo que a maior parcela de libaneses muçulmanos vive em Foz do Iguaçu. Para dar uma ideia do que isso representa, o Líbano tem cerca de 7 milhões de habitantes, os quais se concentram em cidades ao longo do Mediterrâneo. Esse país pequeno e belíssimo, que conquistou plena autonomia como Estado somente em 1944, apresenta diversidade religiosa, com seguidores do islamismo, do cristianismo e de outros credos.
Hoje, o legado árabe é indissociável da miscigenada realidade brasileira. Sua culinária, por exemplo, está presente em todas as regiões e serve de ganha-pão inicial para as novas levas de árabes que continuam chegando ao Brasil, para escapar de conflitos e perseguições. Ao contrário das dificuldades enfrentadas por imigrantes africanos, aqui eles contam com o apoio de uma comunidade coesa e bem estabelecida.
No panorama político destacam-se sobrenomes como Haddad, Boulos, Tebet, Feghali, Aziz, Simon, Kassab, Temer e Maluf. No jornalismo brilham Fernando Gabeira, José Arbex Jr., Jamil Chade, Daniela Arbex, Tárik de Souza, Guga Chacra, Andréia Saddi, Leda Nagle, Ali Kamel e André Rizek. A sedução musical fica por conta de Almir Sater, Zeca Baleiro, Egberto Gismonti, Badi Assad, João Bosco, Evandro Mesquita, Fagner, Tito Madi, Sérgio Ricardo, Wanderléa, Antônio Nássara (que também era caricaturista e desenhista), da pianista Linda Bustani e do produtor musical Almir Chediak.
Os escritores Raduan Nassar, Milton Hatoun, Rose Marie Muraro e Emil Farhat estão no panteão literário, onde se encontra também o escritor, tradutor e diplomata Mansour Challita. O professor e gramático Evanildo Bechara e o polímata Antônio Houaiss foram fundamentais para a formação de grandes intelectuais. Antônio Abujamra, Amir Labaki, Arnaldo Jabor, Janete Clair e Walter Hugo Khoury são indissociáveis de momentos inesquecíveis do teatro, cinema e televisão brasileiros. A coreógrafa Dalal Achcar elevou o balé a outro patamar, da mesma forma que a escultora Odette Eid deixou sua marca no museu a céu aberto em Santo Antônio do Pinhal, na Serra da Mantiqueira.
O saudoso geógrafo humanista Aziz Ab’Saber, seu filho, o psicanalista Tales Ab’Saber, e o economista Edmar Bacha fomentam o debate de ideias para fazer o país avançar em suas notórias mazelas estruturais. O agrônomo Filipe Farhat, neto do poeta Elias Farhat, representa o Brasil em importantes foros internacionais como articulador de parcerias para a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. No campo científico há luminares como a pioneira da física e pesquisadora Neusa Margem, o médico e inventor Adib Jatene, o médico e político Jamil Haddad e o biólogo e escritor Peter Medawar. Como o espaço para este artigo é pré-definido, torna-se inviável enumerar todas as personalidades árabes que vêm influenciando o cenário brasileiro.
Muitas instituições de peso foram fundadas pela comunidade, a exemplo do Instituto da Cultura Árabe (ICArabe), da Agência de Notícias Brasil-Árabe (Anba), do Hospital Sírio-Libanês e do Clube Homs em São Paulo, da Academia Líbano-Brasileira de Letras, Artes e Ciências, fundada há dois anos no Rio de Janeiro, da Câmara de Comércio Brasil-Líbano e os clubes Monte Líbano presentes em várias cidades do país.
Segundo a dinâmica Câmara de Comércio Árabe-Brasileira, em 2023, a balança comercial do Brasil com os países árabes teve superávit recorde de US$ 8,67 bilhões, com aumento de 218,6% em relação ao ano anterior. O Brasil exportou açúcares, carnes de aves, minério de ferro, milho e soja para a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos, a Argélia, o Egito e o Iraque. E importou petróleo e derivados, totalizando mais de US$ 5,7 bilhões, e fertilizantes, somando mais de US$ 3,5 bilhões, da Arábia Saudita, Argélia, Marrocos, Emirados e Catar.
Toda essa movimentação gastronômica, cultural, científica e comercial atesta o êxito da integração árabe em nosso país, cuja política privilegia o estreitamente contínuo de relações com o Sul Global.
21 Comments
Maravilhoso esse artigo que me ensinou muito e me fez lembrar da origem de todos esses artistas e intelectuais maravilhosos.
Thaís, estou seguindo esse ótimo blog e seus artigos são interessantes, como esse sobre a migração libanesa. Ele traz importantes detalhamento para que se possa compreender o contexto social, histórico , político em dadas etapas dessa dinâmica populacional e a trajetória integrada dessa comunidade na nossa sociedade. Parabéns!
Sensacional! Ótimo artigo, texto enxuto e elegante. Tudo muito interessante. Vou repassar essa jóia a amigos de origem libanesa que moram no sul da Brasil. Tenho certeza que eles vão adorar! Parabéns aos envolvidos!
Que riqueza de texto Thaïs! Uma bela aula de história. 👏
Depois da qualidade da primeira publicação de Thais Costa, fiquei esperando essa, que me encantou, igualmente, pela fluidez da escrita, pelos dados levantados, pelos encantos da cultura árabe. Muito bom. Aguardemos a próxima.
Maravilhoso artigo! Muito esclarecedor. Lindo .
Querida Thaïs Costa,
agradecemos a sua preciosa colaboração !
Seu texto está imperdível !
Um abraço carinhoso,
Cristina Ayoub Riche
Excelente artigo. Lembrei da comunidade libanesa em Itapetininga, SP, minha terra natal. De professores, a comerciantes, os libaneses e seus descendentes eram gente como a gente. Não havia diferença nenhuma com os brasileiros de origem japonesa e italiana. Tudos brasileiro! Parabéns pelo artigo!
Adorei a matéria! Muito bem pesquisada e… saborosa! A cidade de Zahle é a terra natal do grande escritor Amin Maalouf, autor, dentre outros, de preciosidades como “A cruzada vista pelos árabes”. É também do Líbano que vieram pro Ceará as familias Jereissati, Ary, Romcy, Otoch, Lazar, Baquit e outras, provavelmente de Zahle. Desconfio até que essa cidade tenha se esvaziado com a intensa emigração.
Parabéns, Thais Costa, queremos mais!
Agradeço muito pelos comentários que me incentivam a buscar facetas interessantes sobre a rica cultura árabe e também me trazem novas informações relevantes. Tem sido muito gratificante colaborar neste blog ligado à Academia Líbano-Brasileira de Letras, Artes e Ciências.
Thaïs, vou encaminhar para minha amiga Bárbara Daher de Londrina.
Que lindo e importante texto. Excelente aula de História. Obrigada, Thaïs, por contar de modo tão claro, preciso e elegante a história daqueles que, como meus pais e avós, vindos do Líbano, chegaram ao Brasil nos anos 1920. Continue escrevendo para este blog, do qual nos orgulhamos, para deleite e alegria de todos nós.
Que lindo e importante texto. Excelente aula de História. Obrigada, Thaïs, por contar de modo tão claro, preciso e elegante a história daqueles que, como meus pais e avós, vindos do Líbano, chegaram ao Brasil nos anos 1920. Continue escrevendo para este blog, do qual nos orgulhamos, para deleite e alegria de todos nós.
Peço desculpas por ter, sem querer, postado o texto duas vezes. Dessas coisas que às vezes nos acontecem na internet.
Muito interessante o artigo que, além da leitura agradável, esclarece a este nonagenário a origem de tantos amigos “árabes” e, até, parentes por afinidade. Eu pensava que eram, em sua maioria, sírios. Parabéns pelo belo trabalho!
A relacao nossa com os povos do Oriente Médio é tão familiar, natural e antiga quanto ao menos a nossa formaçao como país, desde a partida dos navegantes da Península Ibérica, atravessando as políticas de colonização, recrutamento, as guerras e as demais inevitáveis imigrações, que só nos trouxeram o bem, por todas as suas influências e chances de trocas. Este blog é uma maravilha! Traz esses textos e temas especiais e reacende em mim uma disposicão apagada de buscar as luzes dessas boas fontes da nossa Humanidade. Virei fã!
Aprendi muito com o excelente artigo de Thais Costa, que esclarece as origens da imigração Libanesa no Brasil e atualiza a influência desse grupo de pessoas em todos os aspectos da vida social, cultural e política do país, desde o final do século XIX até hoje.
Um artigo importante, porque repleto de informações e num texto fácil e agradável. Parabéns a Thais Costa!
Artigo muito bom, meus parabéns
Parabéns pelo artigo, Thais! Um beijo!
Que artigo perfeito e lindo para ler e contemplar a riqueza que o Líbano havia exportado ao Brasil de cidadãos que escreveram histórias gloriosas.
Creio que este artigo toca cada emigrante com sua história.
Meus avós paternos deixaram o libano e fugiram num navio de carga ainda com documentos do governo otomano.
Tento não faltar de assistir a novela
” Renascer ” para ouvir
“nois não tem pressa, nois tem paciência” essas cenas trazem uma forma de reconhecimento e de gratidão aos antepassados, apesar dos impecilios, conseguiram chegar ao Brasil com uma mala cheia de vitórias / Obrigada.