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A única resposta possível

“Não achou resposta, as respostas não vêm sempre que são precisas, e mesmo sucede muitas vezes que ter de ficar simplesmente à espera delas é a única resposta possível”, escreveu José Saramago em Ensaio Sobre a Cegueira. 

Faz quase um mês que a intensidade, a velocidade e a profundidade das perguntas perderam a medida. Permanecer ou sair? Risco controlado ou irresponsabilidade? Insistir na vida que começa do lado de cá ou interromper? Escalada? Guerra aberta? As respostas, em contrapartida, não vêm sempre que são precisas, como disse Saramago.

Desde 2022, divido meu tempo entre o Líbano e o Brasil. Há quase dois anos e meio, ao final da pandemia, pousava em Beirute pela primeira vez. Aquele Líbano com o qual tanto sonhei desde criança, que imaginei, li, vi, ouvi era, então – e finalmente –, o chão em que pisava. De lá pra cá, em um Líbano ainda profundamente imerso na crise econômica que eclodiu em 2019, vivo entre a beleza e a brutalidade das experiências reais: encantamento, surpresa, fascinação, laços profundos, desespero, isolamento, paralisia, dificuldades, esperança, caos.

Apesar de gigante para mim, uma vivência flagrantemente reduzida e limitada diante da imensidão que cabe nesses 10.452 km2. Cada passo, uma montanha a escalar. O esforço é manter os olhos abertos e a escuta atenta para aprender, escapando às armadilhas da simplificação e das generalizações mecânicas. Valorizar a experiência individual não pode significar perder a medida do todo e, acima de tudo, a capacidade de olhar com empatia e generosidade aos quatro cantos e ao tanto que me escapa no cotidiano, tão fragmentado.

No último mês, as tensões e o temor quanto a uma escalada da guerra se intensificaram. Analistas e especialistas em Oriente Médio passaram a assinalar que entramos em um novo momento, com um risco muito aumentado para um conflito aberto regional após quase 11 meses do massacre em Gaza.

Ao mesmo tempo, a vida segue. São milhões de pessoas que continuam vivendo, trabalhando, existindo, andando pelas ruas e buscando sobreviver aos dias em uma relação com as ameaças e riscos de escalada da guerra que é radicalmente outra. Outra, porque não cabe nos discursos dominantes, nas histórias burocráticas e friamente recortadas que tomam conta do noticiário ocidental. Outra, porque estranha a mim, ao mesmo tempo em que vai se tornando parte de algo em mim.

“Vai sair ou vai ficar?”, a pergunta que não para de chegar vinda de amigos queridos, companheiros de tantas lutas e familiares no Brasil, é mais do que pertinente. Para além do turbilhão de emoções, há decisões concretas, exigidas pelo momento. O que tenho dito é que, vivendo no Líbano, as linhas decisórias são inevitavelmente outras. Ver a vida seguindo, com tanta intensidade e insistência, recoloca medos e incertezas. Eles estão aqui – e como estão –, mas de uma forma diferente, reposicionada em meio a tanto, tanto mais.

“Por que ficar?”, a próxima e inevitável pergunta. É bem verdade que, nesses mais de dois anos, me perguntei o mesmo muitas vezes. Um país em crise, instável, com alto custo de vida, serviços básicos limitados, cortes de luz diários, ausência de transporte público minimamente estruturado. A barreira do idioma. A distância dos amigos, da família, da minha militância em movimentos sociais, do trabalho presencial, da vida cultural no Brasil. E a lista poderia seguir por mais páginas e páginas…

Muitas vezes, fiz também o exercício de me imaginar voltando ao Brasil em definitivo. E a sensação era sempre de tristeza. Frustração. Incompletude. Não sei exatamente por que ficar, mas sei que não quero ir. O Líbano me fascina, me intriga, me desorienta e me recoloca no prumo dos meus desejos. Comecei a estudar árabe, e o desejo de conseguir falar, entender e me comunicar plenamente aqui me motiva. Começo também a me deslocar com alguma confiança, conhecer lugares, me sentir mais confortável.

Desde 2022, assisti aqui a mais de uma dezena de filmes do cinema árabe e libanês contemporâneo, todos os que estiveram em cartaz no período em que estive no Líbano. Conheci filmes sensíveis, bonitos, bem-humorados, inteligentes e cortantes, e um novo universo de profissionais do cinema. Aqui, li meu primeiro livro de Ghassan Kanafani, escritor, jornalista e ativista político palestino, refugiado no Líbano e assassinado em Beirute em 1972, aos 36 anos. Conhecer parte da história da região pela perspectiva de Kanafani foi uma experiência visceral e transformadora.

Passei a escutar muito mais Fairuz. Conheci mais um pouco sobre a música, a culinária, as cidades históricas. Me apaixonei por Batroun, por Jbeil e pelos souks. Estar em Jbeil pela primeira vez, aliás, foi especialmente emocionante. Lembrei das primeiras aulas de história, ainda no ensino fundamental. Lembrei de Guta, meu professor na Escola Senador Correia, que nos contava sobre Biblos em 1996. Em 2022, pisava lá e via pela primeira vez o porto, os mercados, a cidade antiga.

Visitei os sítios arqueológicos de Baalbeck, de Sur, passei pelo porto de Saida – de onde parte de meus ancestrais saíram há mais de uma centena de anos. Chorei, é claro. Vi pessoas, famílias, costumes, vidas seguindo e se reinventando. Entre a fascinação e o caos, sei que há muito mais a viver aqui. Entender, juntar as peças. E contar. Há muitas histórias a contar, e poder contá-las de forma justa e empática é meu maior desejo.

Se, como aprendi com movimentos sociais, minha existência não se encerra em mim mesma, é impossível buscar respostas nesse momento sem considerar esse contexto. Se, como soube desde há muito, de alguma forma sempre houve algo de mim no Líbano, na Palestina, no Oriente Médio, os dois últimos anos recolocaram essa percepção de forma radical. Da minha microexperiência, limitada e fragmentada, tento recolher pistas e indícios desse todo, que existe em toda a sua complexidade e contradição.

“O tempo está-se a acabar, a podridão alastra, as doenças encontram as portas abertas, a água esgota-se, a comida tornou-se veneno, seria esta a minha primeira declaração, disse a mulher do médico, E a segunda, perguntou a rapariga dos óculos escuros, Abramos os olhos”, diz Saramago no mesmo Ensaio Sobre a Cegueira. Se a única resposta possível é ficar à espera de respostas, minha única certeza é que espero de olhos abertos.

foto capa: Stills do filme Blindness, Brasil/Canadá/Japão, 2008, de Fernando Meirelles
fotos: Ghassan Kanafani / pinterest -Fairuz/ Lebanon Traveler- Batroun Souks/ UNHCR-Giles-Duley
Leila Salim Leal é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura, professora universitária, repórter, redatora com experiência em técnicas de checagem e jornalismo digital. Contato: leilasalimleal@gmail.com

12 Comments

  1. Alegria imensa. Orgulho.

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  2. Leila, seu olhar sensível e sua narrativa transbordante das muitas emoções que você está vivendo nos tocam profundamente e nos tornam mais próximos dessa realidade feia e bonita que você está corajosamente aprendendo a conhecer. Admiração por você!

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  3. Sim, minha amiga! Apesar do coração apertadinho aqui fico feliz em ver você realiza do seu sonho. E sim… O Líbano, o Oriente Médio e a Palestina sempre estiveram em você! Coragem, força e olhos abertos. Estaremos também aqui, de braços abertos, para te receber quando você quiser voltar. Amo!

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  4. Comodizia nosso tão querido amigo Ricardo Kubrusly:
    Obrigado por minhas lágrimas !

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  5. Caríssima,
    Sentimo-nos todos um pouco no Líbano: perto do perigo, do mar, da esperança, das curvas da história. Obrigado pelo texto e força!

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  6. Parece que mergulhei nos seus olhos e vivi o Líbano junto com você!
    Obrigada pela força de resistir e existir tão lindamente e nos trazer as belezas da vida e do humano em lugar e contexto tão inesperados.

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  7. Lindo relato, Leila. É sobre ir em busca do que nos move por dentro. Força na luta, querida.

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  8. Saber, dizer e dar vazão a esse desejo tão intenso de não quer ir embora agora, ou nunca, ou quando você quiser, mesmo contra uma possível “lógica”, talvez seja a mensagem mais importante de você para você mesma nesse texto, penso eu. Ter as condições necessárias para tomar decisões, autônomas, e poder dar conta desse desejo é o que mais me deixa feliz por você, porque é por você também, né? Seus desejos, sua história e dos seus! Bonito texto, Leiloca. Os desafios pela frente certamente não serão simples, mas imagino que não ter dúvidas sobre o fato de que daqui seguimos te amando e te acompanhando, ajude um pouco também. Fica bem e força. Um abraço apertado.

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  9. Completamente sem palavras para esse texto lindo, lúcido e visceral. Obrigada por ser inspiração!

    “Há muitas histórias a contar, e poder contá-las de forma justa e empática é meu maior desejo”.

    Escreve um livro por favor?

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  10. Leila parabéns pela coragem e pelo belíssimo texto. Parecia que eu estava no Líbano vivenciando as suas emoções. Boa sorte querida. Continue se aventurando mas de olhos abertos. Um beijo grande

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  11. Leila parabéns pela coragem e pelo belíssimo texto. Parecia que eu estava no Líbano vivenciando as suas emoções. Boa sorte querida. Continue se aventurando mas de olhos abertos. Um beijo grande

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  12. Leila parabéns pela coragem e pelo belíssimo texto. Parecia que eu estava no Líbano vivenciando as suas emoções. Boa sorte querida. Continue se aventurando mas de olhos abertos. Um beijo grande

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