A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) lançou há pouco o livro Aziz Nacib Ab’Sáber: Ciência, meio ambiente e cidadania (Uma homenagem ao mestre!), que traça um painel polifônico sobre a vida e obra do influente geógrafo e ecologista que neste ano completaria cem anos.
Com sua teoria dos redutos, a compartimentação dos domínios morfoclimáticos e numerosos estudos sobre as características naturais do espaço brasileiro, Aziz impulsionou a evolução da Geografia Física no Brasil, expandindo o conhecimento geomorfológico a respeito da origem e evolução das diferentes formas do relevo do país. Igualmente atento aos desafios ambientais no país, debruçou-se sobre aspectos de “geografia humana” e de planejamento urbano e ambiental.
Como outros contemporâneos seus que lutaram por uma nação mais igualitária, usou os próprios conhecimentos e reputação para intervir em embates cruciais. No conflito entre a Vale e os garimpeiros da Serra Pelada, por exemplo, buscou soluções que contemplassem as demandas de ambos os lados. Graças às suas observações certeiras, o Aeroporto Internacional de São Paulo acabou sendo construído em Cumbica. Foi também o responsável pelo tombamento da Serra do Mar no Estado de São Paulo.
Convicto de que a ciência deve estar a serviço da justiça social e ambiental, foi consultor técnico de vários governos e acompanhou Lula nas Caravanas da Cidadania apontando as características de cada região e as intervenções corretas para um desenvolvimento sustentável. Participou da discussão sobre o novo Código Florestal Brasileiro, criticando-o abertamente por ignorar o zoneamento físico e ecológico e a diversidade de paisagens naturais do país. Batalhou também pela criação de um Código da Biodiversidade para proteger as espécies da flora e da fauna brasileiras. Deu forte apoio a movimentos sociais contra obras desenvolvimentistas danosas a seus interesses e modos de vida, como a transposição do rio São Francisco e a barragem dos rios do Vale do Ribeira. O desmonte da política ambiental brasileira era uma de suas maiores inquietações.
Em seus últimos anos de vida, diante do aquecimento global, Aziz cobrava do governo brasileiro medidas drásticas para reduzir os gases de efeito estufa e ações firmes para deter de vez o desmatamento na Amazônia. Estudava também as periferias e propunha instalações úteis para as crianças, a exemplo de um projeto de minivilas olímpicas/clubes da comunidade. Como considerava a educação um fator essencial para a inserção social, fez uma campanha pela formação de bibliotecas comunitárias, mas ponderava, “que existe um intervalo entre o uso dos livros e o hábito de leitura do grupo”.
Um de seus filhos, o psicanalista e ensaísta Tales Ab’Sáber, descreve bem a trajetória paterna: “Homem que acompanhou de perto a vida concreta das pessoas, da terra, da flora e da fauna, sempre olhando tudo pelo ponto de vista do mais frágil no mundo social e no da natureza, que ele não separava. Ao mesmo tempo, teve o poder de rever inteiramente sua ciência, tudo aquilo que percebia e o fazia olhar”.
Aziz transmitiu ao filho sua paixão pela nação e pelos livros, o que explica a busca contínua dos dois por respostas ao enigma “que país é este?”.
Superando barreiras
Aziz Nacib Ab’Sáber nasceu em 1924 na cidadezinha paulista de São Luiz do Paraitinga. Filho de um casal católico – o imigrante libanês Nacib José Ab’Sáber e Juventina Maria Iunes de Jesus, mulher simples cujos pais eram lavradores –, sua infância teve privações materiais, mas ele já intuía que a escola era a única saída para ajudar a família e gostava de observar as paisagens.
Quando tinha seis anos, sua família se mudou para Caçapava, onde ele cursou o primário. Na fase do ginásio, ia diariamente a Taubaté. Aos 16 anos, mudou-se com dois amigos para São Paulo, onde se preparou para o vestibular e se alistou no serviço militar. Graças às suas habilidades como desenhista, foi aprovado em 1940 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH), mas adoeceu e parou de estudar por três meses, o que fez seus familiares irem para São Paulo.
Uma excursão de sua turma para Sorocaba, Itu, Salto e Campinas fez o jovem optar definitivamente pela geografia, pois tinha pendor para ler as paisagens. Além disso, o estudo de história requeria muitos livros, algo inviável diante de suas dificuldades financeiras. Passou então a lecionar no curso secundário, sendo reverenciado pelos alunos que chamavam esse homem muito alto de “o professor que sabe”.
Nas várias viagens feitas com a ajuda de universidades e de amigos, estudou sistematicamente o relevo brasileiro tornando-se especialista em geomorfologia. Em 1944, formou-se em Geografia e História pela USP, onde tornou-se doutor em Geografia, livre-docente, professor titular de Geografia Física e professor emérito da FFLCH. Foi pesquisador nos campos de Ecologia, Biologia Evolutiva, Fitogeografia, Geologia, Arqueologia e Geografia, presidente da SBPC de 1993 a 1995, presidente de honra do Instituto da Cultura Árabe (ICArabe) e patrono da Cadeira 11 da Academia Líbano-Brasileira de Artes, Letras e Ciências, hoje ocupada pelo embaixador José Maurício Bustani.
Durante a ditadura, esse admirador do intelectual palestino Edward Said continuou pesquisando e lecionando, mas ficou com a seguinte lembrança sobre a época: “Não foi fácil porque os alunos, não podendo brigar com os ditadores, brigavam com os professores que tinham mais títulos. Eu sofri muito com isso, pois eles colocavam a gente na direita, embora fôssemos mais socialistas do que eles”.
Após se aposentar, seguiu trabalhando no Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP e presidiu o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat).
Recebeu três Prêmios Jabuti (1997, 2005 e 2007); o Prêmio Almirante Álvaro Alberto para Ciência e Tecnologia (1999), outorgado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia; a Medalha Grã-Cruz em Ciências da Terra pela Academia Brasileira de Ciências; o Prêmio Unesco para Ciência e Meio Ambiente (2001); e o Prêmio Juca Pato de Intelectual do Ano (2011).
Falecido aos 88 anos em 16 de março de 2012, o inesquecível Aziz publicou quase 500 obras, incluindo três teses, 28 livros, 51 capítulos de livro, 215 artigos, sete prefácios e apresentações de livro, quatro resenhas, 26 publicações relativas à participação em eventos e 97 publicações em revistas e jornais. Restam ainda 19 obras inéditas.
Fibra, uma marca dos Ab’Sáber
Originalmente, a família Ab’Sáber vivia em kafaras (aldeias agrícolas) no Líbano. O convite de Dom Pedro II a todos os libaneses para morarem no Brasil animou o patriarca e seu filho Nagib a buscarem oportunidades de crescimento nesse país sul-americano, já que sua pátria sofria convulsões religiosas e econômicas.
Nacib José, que viria a ser pai de Aziz, ficou com o restante da família no Líbano e, para ajudá-la, trabalhava no mercadão de Beirute, onde aprendeu vários ofícios. Muitos anos depois, sua mãe resolveu enviá-lo ao Brasil para que trouxesse o marido de volta. Nas palavras de Aziz, “minha avó ficou preocupada que meu avô conhecesse outra mulher no Brasil”.
Em 1911, com apenas 15 anos, Nacib foi sozinho de navio para o Brasil, sem saber coisa alguma sobre o país, exceto que tinha de ir a São Luís do Paraitinga, onde seu pai vivia. Chegando ao porto do Rio de Janeiro, ficou procurando algum rosto árabe. “Os árabes se reconheciam apenas pela sua fisionomia, pele amorenada e olhos amendoados”, explicava Aziz. Após obter as informações necessárias, foi de trem até Taubaté, pegou carona com tropeiros e seguiu até Paraitinga. Nesse trajeto, as dificuldades de comunicação o fizeram até passar fome.
Na cidadezinha paulista, Nacib logo encontrou seu irmão Nagib, que o levou até seu pai. Como já tinha um pequeno comércio, Nagib preferiu ficar, mas Nacib e o pai voltaram ao Líbano, onde o adolescente foi considerado um herói por ter cruzado o oceano e cumprido sua missão.
O Líbano, porém, continuava agitado por conflitos e um episódio foi decisivo para que Nacib retornasse ao Brasil: em uma ida com sua mãe ao mercado de Beirute, um extremista religioso apontou uma arma para a cabeça do jovem e por pouco não atirou.
Em 1913, Nacib desembarcou no porto de Santos e foi a Sorocaba, onde Nagib estava trabalhando na construção de uma barragem, após seu pequeno comércio gorar devido à concorrência. Com a saúde fragilizada, Nagib decidiu ir com o irmão para o Tatuapé, em São Paulo, onde perdeu um rim. Para mantê-los, Nacib foi trabalhar em uma madeireira. “Pela vida difícil que estavam levando, resolveram retornar a Paraitinga, cidade que já conheciam bem”, elucidava Aziz.
Nacib então se tornou mascate comprando objetos em Taubaté e revendendo-os de porta em porta em São Luís do Paraitinga. E foi assim que conheceu Juventina, com quem se casou aos 21 anos. Algum tempo depois, ele conseguiu ter o próprio comércio. O casal perdeu a primeira filha, ainda pequena, durante uma viagem longa a Aparecida do Norte, mas teve três meninos, Aziz, Iusf e Luís.
Em 1930, antes da mudança para Caçapava, Nacib levou a família para conhecer o mar em Ubatuba. Tal foi o impacto que, anos depois, Aziz escreveria “Ubatuba, a primeira vez que vi o mar”.
9 Comments
Artigos como este fazem-nos conhecer e respeitar a cultura árabe! Conciso e cheio de informações. Parabéns à Thais!
Lendo o artigo da Thaïs, fico admirado de não ter conhecimento do nome de uma pessoa que, apenas oito anos mais velho do que eu, criado também no estado de São Paulo, foi tão ativo na defesa do meio ambiente em nosso país. Paraitinga, por onde passei algumas vezes, ao viajar de São Paulo a Ubatuba, deve se orgulhar de seu filho ilustre. Parabéns, Thaïs.
Linda a maneira como a jornalista Thaïs Costa narra a história do grande intelectual Azis Ab’ Sáder, geógrafo e ecologista muito admirado no mundo acadêmico, não apenas como cientista mas como, sobretudo, como ser humano engajado e comprometido que era. Parabéns Thaïs pelo texto impecável! Muito orgulho de você, Aziz Ab’Sáder, cidadão líbano-brasileiro!
Bom conhecer melhor a vida aventureira desse grande estudioso e professor que influenciou muito o pensamento sobre o ser humano em sua convivência com o meio natural. Texto agradável e elucidativo. Parabéns!
Excelente artigo.
Nossos patrícios trouxeram garras, fé e perseverança nas suas malas e muito amor para prosseguir vitoriosamente.
Um orgulho de ser libanês.
Mais um texto maravilhoso da Thaís Costa. Eu tenho paixão pela cultura árabe e este excelente artigo só fez aumentar a minha admiração. Ansiosa aguardando o próximo.
A importância de Aziz deverá ser letrada para sempre pelos brasileiros, tantos trabalhos publicados. Parabéns pela matéria fantástica!
Mais um texto rico em detalhes da Thaís. Muito bom conhecer essas personagens brilhantes que tanto fizeram pelo país. Pesquisa profunda e uma narrativa clara e envolvente. Muito bom.
Que interessante aprender sobre a obra de Aziz Ab’ Sáber e a trajetória da família do Líbano ao Brasil pelo texto de Thais Costa, leitura agradável e rica em detalhes.