“A vida é como um baralho de cartas. Depois de se embaralhar uma vez, nunca mais voltará a ser como era…”
Para o libanês, o jogo de cartas (لعب الورق) é muito mais do que um simples passatempo ou entretenimento. Ele é um elo de socialização, um ritual que atravessa gerações e une famílias, vizinhos, amigos e a comunidade em um processo contínuo de interação. No Líbano, o jogo de cartas é uma verdadeira escola de vida: um campo de disputa e controle emocional, onde a inteligência, a estratégia, as parcerias e até a política entram em cena.
Acredita-se que os jogos de cartas tenham se originado na China por volta do século 10, espalhando-se por todo o mundo, com os naipes atuais surgindo de uma fusão das versões espanhola e francesa. A palavra “cartas” tem sua origem na italiana “Cartoncini”, que significa “cartões”, e no Levante, o jogo ficou conhecido como “shadda” (الـشَّدَّة).
No Líbano, dois são os principais jogos de cartas: o “Tarneeb” (طرنيب), um jogo de equipe para quatro jogadores baseado em habilidade e parceria, e o “Basra” ou “harami” (لعبة حرامي/ باصرة), um jogo com dois ou mais participantes, onde as cartas são distribuídas igualmente entre os jogadores, e a última carta é colocada à mesa sem que o jogador a veja. O jogo de Basra exige um controle absoluto da situação e das emoções, e seus jogadores se tornam verdadeiros mestres na arte do disfarce e da estratégia.
Alguns termos do jogo têm raízes no aramaico, como o termo “Achouch” (آشوش), que significa “aquele que toma, aprisiona, apreende, possui, leva tudo”. Isso revela a profundidade cultural do jogo, que vai muito além de simples regras: é uma linguagem carregada de história e significado.
Em tempos passados, as “casas de descanso” de Beirute, pequenos cafés conhecidos por sua tranquilidade, eram o cenário perfeito para as longas partidas de cartas que se estendiam pela madrugada. Nesses locais, os jogadores, geralmente aposentados ou trabalhadores que saíam de seus turnos, se reuniam para desafiar a sorte e, claro, saborear o famoso “Narguilé Al-Ajami”. Esses pontos de encontro eram, de fato, o coração da vida libanesa, um reflexo de uma sociedade que encontra na convivência e no jogo o sabor da vida cotidiana.
As “amáveis” gritaria dos jogadores, com seus olhares ávidos e mãos experientes, contavam histórias de uma vida vivida e, ao mesmo tempo, nos revelavam a fragilidade do tempo. Em meio ao jogo, o ritmo da vida pulsava forte. Enquanto as cartas se espalhavam sobre a mesa, o menino, com seu olhar perdido e sonhador, ficava à porta, caçando os sonhos fugidios, como quem busca a promessa de um futuro que, mesmo incerto, é sempre mais doce quando compartilhado à mesa, entre amigos e o barulho das cartas caindo no chão.
© Revista Libanus
foto: Pinterest
3 Comments
Top 10 ! Maravilha de artigos
Obrigado Kalil.
Artigo mais que especial, o jogo de cartas na cultura libanesa é um fator de integração geracional que estimula a atenção, o raciocínio estratégico e o convívio respeitoso e afetuoso. 🌷