“Para salvar o crédito é preciso ocultar a perda.” (Jean de La Fontaine)
Alguns costumes e maneirismos dos libaneses transcendem as classes sociais e até mesmo as gerações. Entre os mais curiosos, um dos mais marcantes refere-se à tradicional dinâmica de pagar um almoço, jantar ou convite a um restaurante. Em muitas culturas, há uma etiqueta bem definida sobre como dividir a conta. No entanto, para os libaneses e árabes em geral, existe uma regra não escrita, quase inconsciente, mas profundamente arraigada, que torna este momento singular: não dividir a conta.
Este é um cenário em que, em vez de dividir o valor, cada um luta para pagar a totalidade da fatura. Podemos afirmar, sem exagero, que os libaneses e árabes não costumam simplesmente pagar a conta… eles travam uma verdadeira luta para pagar a conta! Não se sabe exatamente como surgiu esse mandamento tácito, mas é possível traçar sua origem na mentalidade árabe de generosidade, profundamente conectada a um forte senso de comunidade. Algo do tipo: “a minha casa é a tua casa, mesmo quando você estiver fora dela.”
A insistência em “não dividir” a conta pode ser vista como uma das expressões mais genuínas da cultura libanesa, pois fortalece laços, afeições e, acima de tudo, cria um clima de confiança mútua. Quando alguém paga a fatura, a outra pessoa prontamente responde: “Da próxima vez, sou eu quem vai pagar.” Assim, a dinâmica de encontro social começa a fluir naturalmente, como um ciclo que nunca se rompe. Seria como dividir a conta ao contrário: um paga agora, o outro paga na próxima vez. Essa troca não é apenas uma transação financeira, mas um jogo psicológico e uma demonstração de verdadeira generosidade – algo intrínseco à comunidade árabe, onde o outro é tratado como família.
Agora, imagine a cena: o momento chega e a frase “A conta, por favor” (em árabe, el hessab, min fadlak) ecoa pelo ambiente. O garçom traz a fatura e, instantaneamente, os rostos ao redor da mesa se transformam. As expressões de surpresa e as reações imediatas indicam que a batalha está prestes a começar. Os gestos ficam mais largos, os braços se estendem como se estivessem disputando uma corrida para pegar a fatura. As vozes aumentam e, em árabe, exclamam-se frases como: “Aouzu Billah” (de jeito nenhum), “Wala moumkin” (nem sonhando), “Ma rah idhar baa maak” (não vou mais sair com você), ou ainda, “Ma rah khalik, halaa dauri” (não vou deixar você pagar, agora é minha vez).
A batalha segue com uma intensidade peculiar: ou alguém, em um movimento rápido e certeiro, se lança sobre a mesa e apanha a conta antes que alguém tenha chance de reagir, ou então, alguém estrategicamente se ausenta, indo ao banheiro, para pagar a fatura no caixa do restaurante. E, claro, o garçom – muitas vezes, cúmplice involuntário da cena – participa desse teatro silencioso, sabendo exatamente como “ajudar” o desfecho da luta.
O mais interessante, contudo, é que, embora o momento seja de pura tensão e disputa, ele também traz consigo uma aura de alegria e companheirismo. O estilo libanês de pagar a conta transcende a simples questão financeira. Ele é uma expressão de afeto, de respeito e de um senso profundo de comunidade. E, ao final, esse jogo de “não dividir” acaba, de alguma forma, dando um sabor especial à refeição, tornando-a mais saborosa, mais leve e, principalmente, mais memorável. Afinal, o simples ato de pagar a conta pode ser um reflexo de algo muito maior: a construção de relações sinceras e duradouras.
Em um mundo cada vez mais apressado e impessoal, esse costume libanês resgata o prazer do encontro, da troca genuína e do vínculo verdadeiro. E, por mais que se tratasse de uma “luta” por pagar a conta, no fundo, todos saem ganhando. Afinal, o melhor pagamento em qualquer refeição não é o valor da fatura, mas sim a conexão humana que ela cria e perpetua.
© Revista Libanus
2 Comments
Apesar de ser sírio, muito me agrada conhecer os hábitos e costumes de meus irmãos libaneses. E, esta descrição, foi muito interessante e, da qual, não conhecia. Ao tomar conhecimento, mesmo sem ter lido os arquivos que tenho recebido e, ainda não os lido, guardo-os em minha biblioteca com muito carinho.
Parabéns e a certeza que as transmitirei de imediato.
Obrigado pela leitura e pelo comentário, Sérgio