“Quem vira o ano pedindo, começa o novo ano endividado. Quem vira o ano agradecendo, começa o novo ano sobrando.” (Carpinejar)
Durante as festividades do Ano Novo no Líbano, as tradições dos antigos vilarejos e aldeias sempre vêm à mente dos libaneses: os famosos bailes dos clubes das cidades e, principalmente, algumas práticas ancestrais que remontam às civilizações que passaram pelo país dos cedros. O Líbano, com sua rica história de influências romanas, fenícias, otomanas e árabes, oferece uma gama de tradições que transcendem gerações e continuam a ser celebradas com grande entusiasmo e devoção, unindo famílias e comunidades na celebração da renovação que o Ano Novo traz.
Entre essas tradições, um dos maiores destaques é a “Bistraini” (البسترينة), também conhecida como “Manhã”, que consiste na distribuição de moedas para as crianças na manhã de Ano Novo. Esse costume, profundamente enraizado no imaginário coletivo libanês, remonta aos tempos do Império Romano, quando, no início de cada ano, os imperadores cunhavam moedas com seu nome e as distribuíam como símbolos de prosperidade e boa sorte. As moedas que eram dadas às crianças, muitas vezes antigas e gastas, representavam as bênçãos de um ano próspero, enquanto as novas, cunhadas pelo Império, simbolizavam a renovação e a esperança.
Ao longo dos séculos, a tradição evoluiu, mas a essência permaneceu intacta. As crianças libanesas aguardavam com ansiedade o amanhecer do 1º dia do ano, com a expectativa de poder cumprimentar os adultos com um caloroso “Bistraini aleik” (bom dia de feliz Ano Novo) e, com isso, receber as tão esperadas moedas. A alegria e o entusiasmo eram palpáveis, pois as crianças sabiam que, ao longo do dia, poderiam receber uma boa quantidade de moedas que, de certa forma, ajudariam a iniciar o novo ciclo com mais sorte e prosperidade. E como recompensa para as crianças mais rápidas, que se levantavam mais cedo, havia o privilégio de ganhar uma “Bistraini extra” – uma generosa dádiva do tio ou avô, que enchia os bolsos das crianças com notas de libras libanesas, tornando o início do ano um momento de grande expectativa e emoção.
Além dessa prática, o Líbano guarda outras tradições marcantes que refletem a diversidade de crenças e rituais que coexistem no país. Um desses costumes peculiares é o de desligar a luz e acendê-la novamente na véspera de Ano Novo, com a crença de que este ato traria saúde e afastaria o fantasma da morte no ano que se inicia. O simbolismo por trás dessa prática é profundo, pois remonta às antigas religiões e mitos que consideravam a luz como uma manifestação do divino, sendo ela associada ao calor da vida, enquanto a escuridão representava a morte. Esse gesto, portanto, simboliza o desejo de que a vida e a energia do sol prevaleçam sobre a escuridão do passado, trazendo um novo começo repleto de saúde e vitalidade.
Outra tradição fascinante que acompanha a virada do ano libanês é o costume de jogar vidro pelas janelas. Este ato não é apenas uma liberação simbólica de frustrações, mas um rito que acredita-se purificar o ambiente, quebrando os males e as energias negativas do ano que se vai, deixando espaço para um novo começo. O estalo do vidro quebrando ecoa pelas ruas, uma espécie de ritual coletivo que anuncia o fim das dificuldades e o início de um futuro mais promissor.
Além disso, existem também os rituais de apostas, populares em lugares como o famoso Cassino do Líbano. Esses rituais têm forte vínculo com o aspecto lúdico e esperançoso da virada do ano. O jogo de cartas “7 e meia”, semelhante ao Blackjack ou ao nosso “21”, é uma das formas mais tradicionais de apostas no Líbano, onde os participantes usam grãos de bico como moeda. A crença é de que quem vence este jogo na noite de Ano Novo terá sorte durante todo o ano, sendo o vencedor o portador das bênçãos da fortuna.
Ainda, no Líbano, as previsões dos videntes desempenham um papel importante nesse período. As pessoas seguem com grande interesse os horóscopos e as previsões de videntes renomados, como Michel Hayek e Laila Abdel Latif, que, com suas afirmações misteriosas e frequentemente dramáticas, guiam as esperanças e os temores do povo libanês para o ano que se inicia. As previsões sobre o futuro, que são lidas como um reflexo dos desejos e medos coletivos, tornam-se uma parte essencial da celebração do Ano Novo, sendo discutidas em famílias e círculos de amigos.
Na madrugada fria do dia 1º de janeiro, enquanto as ruas ainda ecoam com o som das celebrações, as crianças aguardavam ansiosas o retorno dos pais que haviam ido aos bailes de Ano Novo. Com a chegada dos adultos, era inevitável que as crianças gritassem, com entusiasmo e alegria: “بسترينتي عليك” (Bistraini aleik). Para os pequenos, o Ano Novo estava oficialmente começando, trazendo com ele as moedas de presente que simbolizavam uma nova esperança. Para os adultos, o Ano Novo representava a oportunidade de se livrar das agruras do passado e renovar as esperanças de dias melhores, em um ciclo constante de superação e renovação.
Essas tradições, que se mantêm vivas no coração do povo libanês, são um reflexo da história do país, de sua convivência com diversas culturas e crenças, e de sua eterna busca por renovação e prosperidade. Embora o Líbano tenha enfrentado inúmeras dificuldades ao longo de sua história, essas tradições são um lembrete da força da sua cultura e do espírito resiliente de seu povo. E assim, a cada virada de ano, o Líbano renova sua esperança, celebra a vida e se prepara para enfrentar os desafios do novo ciclo com otimismo e união.
© Revista Libanus