Qual o seu legado?
Pode parecer uma pergunta simples e curta. Curta nas palavras, mas profunda demais para uma resposta rápida. Talvez leve uma vida para descobrir o que quer deixar como seu legado. Essa pergunta fica ainda mais séria quando se torna mãe ou pai.
Por muitos anos recebi de herança sabores. Foi pela comida que meus avós maternos me fizeram conhecer um pouco a terra dos nossos antepassados: o Líbano. Hoje sinto que é pouco, aos poucos vou perdendo também algumas receitas de quibe feito com esmero ou da kafta com sorrisos de Natal. Foi o que pude receber do pouco que lhes restava da cultura que carregavam ainda em vida, passada pelos seus ancestrais.
Com a chegada da nova geração, e a despedida dos meus avós, precisava encontrar mais dessa cultura e desvendar mais das histórias dos antepassados e encher um pouco mais a bagagem de meu filho para a vida, para além das bolinhas de quibe cru “secretamente” roubadas.
E, por obra do destino (ou não) eu me reencontro com a obra de Khalil Gibran: O Profeta. Confesso que, desde que conheci seu texto, eu me apaixonei e tornei este livro o companheiro das minhas reflexões.
Eu queria tê-lo conhecido em vida, participado de um dos jantares que menciona em suas cartas para Mary E. Haskell. Seria eu uma das convidadas que não se cansaria de falar? Ou seria aquela mulher quieta que observava a fala do marido e despertaria em Gibran a conclusão de que o homem se faz pela mulher? Não sei e, claro, nunca saberei. Mas não falta imaginação.
O centenário de publicação da obra O Profeta me fez viajar em seus outros livros e mergulhar nos seus textos: nas suas parábolas sábias, na beleza artística com que pinta suas palavras, que tem o poder de despertar emoções nas almas mais fechadas.
“Eu vivo torturado porque as pessoas, em vez de usarem imagens, não param de falar nunca, e não posso interrompê-las a cada instante. Uma torrente de palavras, palavras, palavras está sempre jorrando e, mesmo assim, ninguém se dá realmente conta do que está dizendo.” (Coelho, Paulo. As Cartas de Amor do Profeta . Unknown. Edição do Kindle.)
“Tive uma noite excelente na Sociedade de Ciências e Artes. W.B. Yeats estava lá com sua esposa, e leu trechos de seus poemas. Ela é muito estranha; enquanto Yeats recitava seus versos, parecia retraída e inexpressiva. No entanto, quando nos sentamos para jantar juntos, ela mostrou-se viva, interessada, e extremamente culta. Parece que Yeats entende a importância dessa mulher em sua vida. O propósito da existência sempre se manifesta através do lado feminino; é a única maneira que o homem tem de compreender sua missão.” (Coelho, Paulo. As Cartas de Amor do Profeta . Unknown. Edição do Kindle.)
Assim começo a minha viagem de retorno ao país dos meus antepassados, para conhecer um Líbano lírico de belezas naturais inigualáveis onde a primavera é poética e seus jardins de cedro podem transcender seu odor no tempo e no espaço. Um Líbano também de contradições, de desigualdades, de dificuldades que não deixa de ser amado e lembrado com carinho em terras distantes.
Lendo As Ninfas do Vale, fiquei encantada com as paisagens descritas, mas muito mais que isso, fiquei encantada com a capacidade de Gibran de compreender o universo feminino e a condição da mulher na sociedade. Como um homem poderia ter esta compreensão no início do século XX? Reconhecer a condição social da mulher e suas opressões sutis (ou nem tão sutis assim)?
Khalil transmite em seus textos uma alta capacidade reflexiva sobre o mundo e uma sabedoria que é quase inalcançável aos mortais.
Em Espíritos Rebeldes ele foi capaz de me lembrar da cultura da mediação de conflitos e como a comunicação é importante e o quanto as verdades de cada história são relativas e que há sim uma verdade, uma razão de estarmos no mundo: “Não viemos a este mundo na qualidade de proscritos, mas como crianças ignorantes, para que possamos aprender com as belezas e os segredos da vida a veneração do Espírito eterno e universal e a busca das coisas ocultas da alma.”
Em O Louco, ele desperta em nós uma capacidade ainda maior de reflexão sobre o que de fato é normal e o que podemos chamar de loucura. Foi uma loucura meus antepassados virem de navio para o outro lado do mundo com seus filhos pequenos e minha bisavô grávida de meu avô, para um país completamente diferente em cultura, desconhecido, especialmente a língua? Quais eram suas expectativas? Como foi encontrar a realidade no Brasil? Por que o Brasil?
Khalil Gibran sem dúvidas foi O Mensageiro para mim em vários aspectos, algumas vezes relembrando algo já dito em família ou então trazendo sentido para a minha vida. Na sua obra, relembra uma frase que sempre ouvi em casa, coisas vem e vão, mas nosso nome, nosso caráter, ou nas palavras de Gibran, nossas virtudes, estas permanecem conosco, não importa o momento em que passamos.
Em Asas Partidas, eu me reencontro com a maternidade, com o maior amor de todos, muitas vezes acredito mesmo que é meu filho que vai me conduzir e dar sentido a tudo que faço nesta vida. Selma não realizou seu amor platônico juvenil, faleceu com os filhos nos braços recém-nascido. Eu chorei também, sob o seu túmulo, choro da tristeza: quantas mulheres viveram e vivem sem poder viver o amor? Existe algo mais importante que o amor?
Por pouco, deixo passar a importância da religião para a minha família. Como cristãos ortodoxos, os crucifixos, o terço, as orações e a bíblia era algo tão presente que não poderia nunca imaginar uma casa sem eles. Tenho até hoje meu primeiro livro de orações que minha vô me deu ainda criança. Nem sempre minha fé foi tão forte diante das injustiças de nossa sociedade, confesso. Khalil Gibran tinha fé, uma fé na vida e nos ensinamentos de Jesus Cristo apesar de todas as suas intempéries vividas.
Ele tinha uma fé que vai no cerne do que é a palavra cristã, para além da religião. Ele foi capaz de demonstrar em texto como devemos ser capazes de compreender Cristo, compreender as várias possibilidades de percebê-lo, seja pelo olhar de Maria Madalena, ou pelo olhar de Caifás, ou sob o olhar de um Pastor do sul do Líbano que por ventura esbarrou com Jesus em suas andanças. Jesus, o filho do homem foi sem dúvidas o livro de Gibran que mais me surpreendeu. Como ele conseguiu escrever tantas percepções diferentes sobre Cristo, de pessoas que o conheceram em vida? Este livro é sem dúvidas um convite para nossa reflexão sobre como vemos os outros e a nós mesmos. Nem Cristo foi percebido de forma unânime, imagine nós?
Eu nunca tinha pensado em como tudo poderia vir para mim com tamanha profundidade, Khalil Gibran me demonstra que, não apenas nas relações familiares posso refletir sua sabedoria, mas em meu trabalho também. Em A voz do mestre, publicada décadas após seu falecimento, marca ainda mais o seu legado e deixa claro que o conhecimento é uma das maiores riquezas humanas, a única que “os tiranos não podem roubar.” E, nesta obra deixa bem claro sua posição contra a violência e contra as guerras, algo tão valoroso para mediadores de conflitos, como eu.
Com, certeza a sua obra prima, O Profeta é o grande presente do escritor para a humanidade, que este ano completa o centenário de sua primeira publicação e continua sendo um dos livros mais lidos do mundo. Cada página tem a sabedoria e a beleza poética mais sublime, tratando dos temas humanos mais importantes, casamento, filhos, trabalho, amizade, dentre outros. É impossível tentar aqui sequer pincelar um pouco do que ele traz em cada um dos capítulos, só consigo concordar com Mary Haskell quando teve a oportunidade de ler a obra:
“Meu amado Kahlil, bendito seja, bendito seja, por ter dito tudo isso, e por ser um trabalhador capaz de dar à vida interior uma manifestação visível. Bendito seja por ter a energia e a paciência do fogo, do ar, da água, e da rocha. Este livro será um tesouro da literatura. Quando nossa alma estiver escura, nós o abriremos, para de novo encontrar o Céu e a Terra dentro de nós mesmos. Ele resistirá a muitas gerações, que continuarão encontrando em suas páginas o que necessitam ouvir, e será cada vez mais amado, à medida que os homens entenderem melhor a si mesmos.”
Pelas palavras de Gibran, iniciei uma viagem para encontrar meus ancestrais e, por elas, descobri que toda a riqueza, a luz, a verdade que possa ter herdado está dentro de mim. Que a sabedoria das palavras de Gibran possam despertá-las e que eu tenha a condição de potencializá-las e transformá-las em minha vida, que a minha verdade seja meu legado. Grata pela leitura e companhia nesta viagem!
Samira Iasbeck
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Livros citados no artigo:
Coelho, Paulo. As Cartas de Amor do Profeta . Unknown. Edição do Kindle.
Gibran, Khalil. O Mensageiro: Suas Parábolas e Poemas, p. 89, Montecristo Editora. Edição do Kindle.
GIBRAN, Khalil. A voz do mestre. São Paulo: Mantra, 2018.
GIBRAN, Khalil, Espíritos Rebeldes, tradução de Edson Bini. São Paulo: Mantra, 2018.
GIBRAN, Khalil. Asas partidas. Rio de Janeiro: Record, 2021.
GIBRAN, Khalil. Jesus, o filho do homem. São Paulo: Mantra, 2016.
Gibran, Khalil. O Louco: Suas Parábolas e Poemas, Edições29, 2022. Edição do Kindle.
Gibran, Khalil. Ninfas del Valle. Panamá: Fragata Cultural. Edição Kindle.
GIBRAN, Khalil. O Profeta. São Paulo: Mantra, 2018.
“Eu vivo torturado porque as pessoas, em vez de usarem imagens, não param de falar nunca, e não posso interrompê-las a cada instante. Uma torrente de palavras, palavras, palavras está sempre jorrando e, mesmo assim, ninguém se dá realmente conta do que está dizendo.” (Coelho, Paulo. As Cartas de Amor do Profeta . Unknown. Edição do Kindle.)
“Tive uma noite excelente na Sociedade de Ciências e Artes. W.B. Yeats estava lá com sua esposa, e leu trechos de seus poemas. Ela é muito estranha; enquanto Yeats recitava seus versos, parecia retraída e inexpressiva. No entanto, quando nos sentamos para jantar juntos, ela mostrou-se viva, interessada, e extremamente culta. Parece que Yeats entende a importância dessa mulher em sua vida. O propósito da existência sempre se manifesta através do lado feminino; é a única maneira que o homem tem de compreender sua missão.” (Coelho, Paulo. As Cartas de Amor do Profeta . Unknown. Edição do Kindle.)
Veja: “Entendessem as pessoas a linguagem do silêncio, e então estariam mais próximas dos deuses do que dos animais selvagens da floresta.” (GIBRAN, Khalil, Espíritos Rebeldes, tradução de Edson Bini. São Paulo: Mantra, 2018, p.36).
Quando Khalil escreve a primeira história de Wardé e Rashid, no livro Espíritos Rebeldes, consegue trazer os olhares de cada personagem sobre a separação e cada um com a sua verdade. Além disso de uma forma bem reflexiva traz à tona um questionamento dentro do que chama monólogo mental, abrindo as portas para o leitor sair da lógica de culpabilidade: “Qual deles é o opressor e qual é o oprimido? Realmente, quem é o culpado e quem é o inocente?” (idem, ibidem, p. 25)
“…aquelas coisas sobre as quais a Fortuna tem influência – bens materiais, dinheiro, posses, posição – são fracas, inconstantes, propensas a perecer e de posse incerta. Por outro lado, as obras da virtude são livres e insubmissas, nem mais dignas de serem procuradas quando a Fortuna as trata com bondade, nem menos dignas quando alguma adversidade pesa sobre elas.” (Gibran, Khalil. O Mensageiro: Suas Parábolas e Poemas, p. 89, Montecristo Editora. Edição do Kindle).
Veja os trechos: “Quatro coisas um governante deve banir do seu reino – ira, avareza, falsidade e violência.” ( GIBRAN, Khalil. A voz do mestre. São Paulo: Mantra, 2018, p. 19). E mais para frente: “É um soldado obrigado pela lei cruel dos homens a abandonar esposa e filhos e ir para o campo de batalha em nome da avidez que seus líderes chamam erroneamente de dever?” (idem, p. 35).