No último dia 15 de setembro, o Líbano perdeu um de seus maiores romancistas e defensores da causa palestina. Após uma longa doença, Elias Khoury faleceu aos 76 anos em Beirute, onde estava há meses internado em um hospital.
Sua obra prolífica, que privilegia temas como a memória, a guerra civil libanesa (como em A pequena montanha e Yalo) e o exílio, foi traduzida em vários idiomas, incluindo português, francês, inglês, alemão, hebreu e espanhol.
Sua célebre epopeia A porta do sol (2002) relata a tragédia da Nakba em 1948, a expulsão de palestinos de suas terras e o massacre de centenas de moradores da cidade de Lidd por soldados israelenses, por ocasião da fundação do Estado de Israel. A obra foi adaptada para o cinema pelo diretor egípcio Yousri Nasrallah.
Uma espécie de sequência de A porta do sol, o romance Meu nome é Adam foi lançado no Brasil pela Tabla e comentado por Milton Hatoum em um artigo publicado na revista Quatro Cinco Um. Segundo o autor amazonense, “encontros inesperados são antigos motivos literários. Por acaso, Elias Khoury, escritor e professor de literatura em Nova York, conhece Adam Danunn, um vendedor de faláfel e sócio de um restaurante. Adam fala fluentemente árabe e hebraico, e Khoury não sabe se ele é palestino ou judeu israelense. Essa é uma das ambiguidades deste romance monumental, em que a fábula se mistura com a História, a imaginação com a memória, a vida particular dos personagens com a tragédia de todo um povo.
Uma semana antes de morrer num incêndio em seu apartamento nova-iorquino, Adam Danunn entrega uma carta-testamento a sua amiga coreana Sarang Lee, também amiga de Khoury e aluna deste. Na carta, Adam pede à moça que queime seus cadernos com os manuscritos de um romance; mas, em vez de queimá-los, ela os entrega a Khoury, que decide publicá-los na íntegra, sem interferir no texto. Esses manuscritos compõem o romance Meu nome é Adam, primeiro volume da trilogia Crianças do Gueto”.
Nascido em Beirute em 1948, Elias Khoury se engajou desde cedo na causa palestina e durante anos trabalhou em campos de refugiados no Líbano, onde conviveu com palestinos. Entre 1975 e 1979, foi redator-chefe da revista Les affaires palestiniennes, colaborando com o célebre poeta Mahmoud Darwich. Foi também diretor editorial da seção de cultura do jornal libanês As-Safir e redator-chefe do suplemento cultural do jornal An-Nahar. Lecionou em várias universidades no Oriente Médio, Europa e Estados Unidos. E, apesar dos sofrimentos físicos e da internação hospitalar, continuou escrevendo até o final da vida.
Em julho passado, em um artigo escrito no leito do hospital e intitulado Um Ano de Dor, ele desabafou: “Há quase um ano Gaza e a Palestina são bombardeadas de maneira selvagem, mas resistem (…) esse exemplo me ensina a amar a vida a cada dia”.
Clima de insegurança e caos
Na terça-feira (17), dois dias depois da morte de Khoury, o Líbano entrou em uma espiral de tensão máxima. Acuado por um conflito assimétrico entre uma superpotência e um grupo radical, ambos altamente beligerantes, o país foi alvo de um ataque cibernético coordenado às 15h45 que explodiu simultaneamente centenas de pagers utilizados pelo Hezbollah, que é aliado do Hamas. As baixas resultantes em Beirute, no sul e no leste do país somaram 12 mortos e quase 3.000 feridos, incluindo centenas de membros do movimento islamista libanês e o embaixador do Irã no Líbano. Na Síria, 14 membros do Hezbollah também se feriram.
O ministro libanês da Saúde Firass Abiad informou que a maioria das vítimas era composta por civis e teve ferimentos “no rosto, na mão, no abdômen e nos olhos”.
No final da tarde de quarta-feira (18), uma nova onda de explosões, desta vez com walkie-talkies do Hezbollah, feriu 450 pessoas, causou pelo menos 25 mortes e incendiou prédios no subúrbio de Beirute e em várias regiões do Líbano. Na capital libanesa, sistemas de energia solar de casas e aparelhos para biometria também explodiram.
Na quinta-feira, sexta-feira e sábado seguintes (19, 20 e 21), aviões do país vizinho sobrevoaram Beirute e bombardearam posições militares e vilas no sul do país, em mais um exercício de intimidação. Um ataque aéreo na sexta-feira matou pelo menos 14 pessoas e destruiu dois edifícios residenciais.
Em meio à paralisia política e à pobreza que triplicou nos últimos dez anos, como informa o Banco Mundial, a população do Líbano agora se sente acuada e insegura de usar telefones celulares e outros dispositivos eletrônicos, pois os ataques sofridos nos últimos dias deram início ao que a grande imprensa internacional denomina de terror eletrônico.
Cerca de 21 mil brasileiros moram no Líbano. Uma nota emitida há poucos meses pela Embaixada do Brasil em Beirute recomenda que brasileiros não visitem o Líbano, mas, caso estejam por lá, saiam por meios próprios até a situação melhorar. O Itamaraty também aconselha que os cidadãos evitem o sul do país e outras zonas de fronteira, assim como aglomerações e protestos.
O que diz a imprensa internacional
Aparentemente, a explosão de walkie-talkies e pagers em Beirute e no sul do Líbano foi comandada pela Unidade 8200, um grupo militar secreto de Israel. Segundo a Reuters, trata-se de uma equipe de inteligência e segurança cibernética que atua como a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos e a GCHQ britânica. Formada por jovens talentosos em programação e segurança cibernética, essa equipe atua em sigilo total coletando dados e planejando ataques tecnológicos.
De acordo com uma reportagem do New York Times, os pagers AR-924 da marca taiawanesa Gold Apollo na verdade foram fabricados por uma empresa húngara de fachada, tinham baterias com o explosivo PETN e um código, e sua explosão foi ativada por meio de uma mensagem falsa.
É importante frisar que o uso de dispositivos ou armadilhas aparentemente banais, mas que contenham materiais explosivos, é proibido pelas Convenções de Genebra de 1949 em relação a guerras e por outras leis internacionais ligadas aos direitos humanos.
Lotes pequenos de pagers começaram a ser enviados para o Líbano no verão de 2022, mas a produção aumentou assim que o líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, suspeitou que Israel poderia interceptar as comunicações por telefones celulares e ativar câmeras e microfones remotamente.
O balanço geral de mortos, feridos e destruição de prédios, veículos, sistemas de energia solar e aparelhos para biometria remete a reflexões do escritor libanês Amin Maalouf: “Como os herdeiros das maiores civilizações e os portadores dos sonhos mais universais se metamorfoseiam em tribos raivosas e vingativas? Por que essas fraturas identitárias e ideológicas — sem dúvida relacionadas ao sistema predador e divisionista — não foram ou não puderam ser evitadas?”
Maalouf pondera que a violência continuará imperando mundo afora e dizimando civis inocentes enquanto o Oriente Médio não se livrar dos sectarismos religiosos e regimes totalitários; e a erosão da democracia não for estancada em países ocidentais com governantes populistas e nacionalistas de uma direita ultraliberal que exalta o individualismo extremado, no qual cada indivíduo só busca atender aos próprios interesses e o Estado é apenas um coadjuvante na organização social e nas políticas públicas. Esse nacionalismo patrioteiro e autoritário, que tem gerado ondas virulentas de xenofobia e racismo, é agravado pelo negacionismo das ciências, do aquecimento climático e das catástrofes ambientais, o qual é insuflado pela indústria criminosa das fake news e outros artifícios maliciosos.
4 Comments
A Thaïs não cansa de nos surpreender. Um texto belíssimo, humanista e traz no seu bojo um clamor pela solidariedade. A morte do intelectual é guardião das massas. Elias Khoury abalou todo o mundo árabe. Os jornais franceses o chamaram de Sartre das causas árabes. Elias Khoury nunca hesitou em tomar uma posição, a posição dele sempre foi a favor dos pobres, refugiados, massacrados e os fora do lugar. Parabéns Thaïs.
Este artigo da Thaīs me apresenta mais um libanês notável, destaca muito bem o drama da população do Líbano e lembra o sofrimento dos palestinos. Todos, vítimas de guerras que não têm fim.
Em texto primoroso Thaís Costa nos traz as profundas dores dos povos desta região tão conflagrada do Oriente Médio. Aqueles que como eu cresceu nutrindo grande empatia pelo povo judeu vítima do holocausto nazista, mal pode acreditar que esse mesmo povo – ou parte dele – agora, use da mesma crueldade para assassinar seres humanos inocentes, homens, mulheres e crianças palestinas, numa escalada de selvageria inacreditável e inaceitável! A alma de jornalista de Thaís se revela em sua plenitude ao trançar histórias paralelas doa dramas árabes, num momento tão oportuno.
Como sempre, Thaïs Costa nos brinda com mais um excelente artigo, desta vez nos revelando aspectos importantes da obra e da vida de Elias Khoury, este incrível ser humano, grande romancista e incansável defensor da causa Palestina. Parabéns Thaïs, pelo claro e contundente texto! Ao brado de Elias Khoury, que ressoará para sempre dentro de todos os que lutam por um mundo mais justo, juntamos em uníssimo nossas vozes. Neste momento de grande tristeza, convoco todas as pessoas de bem a nos associarmos ao repúdio publicado pelo Consulado Geral do Líbano, em relação às atrocidades cometidas por Israel contra o nosso querido Líbano, matando indiscriminadamente homens, mulheres e crianças, numa escalada de horror que atingiu ontem o maior número de mortes no país, em 34 anos.