“A gente não se liberta de um hábito atirando-o pela janela: é preciso fêzê-lo descer a escada, degrau por degrau.” (Mark Twain)
No Líbano, as escadarias são muito mais do que um elemento arquitetônico: elas carregam histórias, memórias e os passos de gerações. Cada degrau conta um fragmento de vida, ligando o cotidiano às lembranças de infância e às paisagens culturais de um país marcado pela resistência e pela tradição.
Há as escadas que levam ao sótão – um abrigo silencioso durante as guerras, onde o vinho e as memórias se escondem; as que conduzem ao telhado, onde os mantimentos de inverno (mouneh) são guardados. Essas escadas são especiais: os primeiros degraus são propositalmente ausentes, exigindo uma pequena escada de madeira para alcançá-los. Era uma medida de proteção, impedindo que crianças e animais acessassem o local.
Há também as escadas estreitas no coração dos “souks” (mercados), conectando caminhos labirínticos, repletos de cheiros e vozes que contam as histórias de um Líbano que resiste ao tempo. Outras levam aos jardins secretos, refúgios de paz onde o verde e o azul do céu se encontram. E há as escadas das montanhas, que nos conduzem ao sagrado – às florestas de cedros, à lua e, quem sabe, ao contentamento.
Em Beirute, as escadas também contam sua própria história. Entre elas, a famosa escadaria de Mar Mikhael, composta por oito passagens principais que conectam os bairros de Mar Mikhael e Jeitawi. Outras menores se escondem entre as vielas, construídas ao acaso por habitantes locais. Antes da urbanização moderna, essas escadas eram a única conexão entre as casas e a antiga estação de trem. Hoje, são um elo com a velha Beirute, um convite para explorar comunidades que mantêm traços intactos desde os anos 1950, com seus jardins compartilhados, o aroma de café e as conversas cotidianas que atravessam gerações.
Mas essas escadas também testemunharam a dor. Em 4 de agosto de 2020, a terrível explosão no Porto de Beirute devastou a cidade, e as escadarias de Mar Mikhael não escaparam ilesas. Elas guardam agora as marcas dessa tragédia, ecoando a resistência de um povo que encontra forças para reconstruir não apenas os espaços, mas também a esperança.
A arquitetura também celebra essas estruturas. O projeto “Escadaria Saifi”, da PSLAB em colaboração com o arquiteto libanês Bernard Khoury, é um exemplo hipnotizante de como escadas podem se tornar obras de arte. Estas criações vão além da funcionalidade, transformando degraus e corrimãos em elementos que despertam sonhos, seja pela elegância ou pelos desafios que impõem a quem sobe.
E então há a infância. O menino que, anos depois, retorna à aldeia para rever aquela escadaria tão grandiosa de sua memória, agora a encontra pequena. Ele cresceu, mas os degraus permanecem os mesmos. Ao chegar ao topo, ergueu os olhos e leu nas nuvens o poema de Fernando Sabino: “Façamos da interrupção um caminho novo, da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sonho uma ponte, da procura um encontro!”. Com um pequeno passo, ele desceu, carregando consigo a felicidade de quem encontrou, no alto, o sentido dos degraus que o levaram até ali.
As escadas do Líbano não são apenas estruturas de pedra ou madeira. Elas são pontes entre gerações, memórias e esperanças. Cada degrau é um convite para revisitar o passado, reconstruir o presente e sonhar com o futuro.
© Revista Libanus