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May Ziade: A Intelectual que Desafiou Séculos de Silêncio Feminino

“A mulher que lê é perigosa, mas a mulher que pensa é revolucionária”
(May Ziade)

Quando se fala em literatura árabe, de imediato o nome da personagem de As Mil e Uma Noites Sherazade e suas narrativas surge. Essa personagem ganha destaque na medida em que é vista como a voz libertadora das mulheres oprimidas numa sociedade patriarcal, cuja estrutura coloca os interesses delas subordinados aos dos homens. Não importando se oriental ou ocidental, a força dessa estrutura é mantida, pois na sua essência determina que os homens ocupem os espaços públicos, ao contrário das mulheres, que ficariam restritas ao ambiente doméstico.

No cinema algumas mulheres romperiam com essa estrutura, mesmo assim, não conseguiriam fazer uma mudança efetiva nas relações cotidianas e de poder, uma vez que o poder do patriarcado fica interiorizado. Mesmo no caso da personagem ficcional de Sherazade, colocando seu corpo a serviço do rei, para libertar outras mulheres, ofertando-o ao poder masculino, o atendimento à vontade do rei, cria um “poder hipnótico” da violência simbólica, reforçando-se a sua naturalização.

Mas, assim mesmo, texto literário não perde sua força e tem por principal característica romper silêncios, e no caso da literatura produzida por mulheres, gradativamente, derrubar os vários muros individuais para construir pontes para a unificação dessas vozes, a literatura une pela sororidade. Assim como o cinema árabe no início do século XX abriu uma tímida possibilidade para essas vozes femininas serem ouvidas, a literatura moderna árabe iria por esse mesmo caminho. Além disso, entende-se que na literatura, ainda, apresentam-se concretamente as formas de pensamento de uma determinada visão de mundo, pensamento ou tempo histórico (Bourdieu,1996). Não por acaso o surgimento do discurso narrativo moderno na literatura árabe tem o nome das egípcias Aisha Al Taymuriya (1840-1902) e Malak Hifni Nasif (1886-1918), a libanesa Zaynab Fawwaza (1850-1914) e a líbano-palestina May Ziadeh (1886-1941) que trazem o debate acerca das questões femininas.

Recorta-se, assim, para nossa reflexão, o nome de May Ziade, representante do movimento da Al Nahda, o Renascimento Cultural Árabe, que se inicia no século XIX. Nascida em Nazaré, na Palestina, filha de um professor libanês com uma palestina, tem sua formação em escolas católicas no Líbano, aos 16 anos começa a escrever artigos para pequenos jornais acadêmicos e aos 22 anos se muda com a família para o Egito, lá cursaria Literatura na recém-inaugurada Universidade do Cairo. Já no Egito,  seu pai funda um jornal e com ele , a jovem May, começa a trabalhar assinando uma coluna.  Nesse contexto, May Ziade emergiu como uma das vozes mais influentes  da Nahda ,  no início do século XX. Escritora, poetisa, tradutora e intelectual, ela se destacou não apenas por sua erudição, mas também por seu papel na defesa dos direitos das mulheres em um período de profundas transformações sociais no mundo árabe.  

Em 1912, neste mesmo ano, no Cairo, funda o Salão Literário que se tornaria ponto de encontro da elite intelectual, tanto homens quanto mulheres participariam e lá apresentaria e discutiria com seus pares a obra do escritor libanês, tornando-se, ainda a divulgadora do seu trabalho no mundo árabe.

Relevância Cultural e Literária

A partir de 1912, começa uma vasta correspondência com o escritor Gibran Khalil Gibran, ela enviou uma carta para o autor mostrando o quão profundamente estava comovida com o romance Asas Partidas, uma vez que reconhecia nele o tema voltado para os direitos das mulheres, a partir de então manteriam contato por 19 anos, até a morte dele nos Estados Unidos. Ainda neste mesmo ano, no Cairo, funda o Salão Literário, com encontros realizados em sua casa,  que se tornaria ponto de encontro da elite intelectual, tanto homens quanto mulheres participariam e lá apresentaria e discutiria com seus pares a obra do escritor libanês Gibran Khalil Gibran, tornando-se, ainda a divulgadora do seu trabalho no mundo árabe. Em seu famoso “salon littéraire”,  atraía personalidades como Taha Hussein, Abbas Mahmoud al-Aqqad e Antoun Gemayel, tornando-se um espaço de efervescência intelectual. Sua escrita — que incluía poesia, ensaios e artigos jornalísticos — abordava temas como liberdade, educação feminina e justiça social, sempre com uma prosa elegante e crítica.  

Além de suas obras originais, Ziade, traduziu autores europeus como Victor Hugo e Arthur Conan Doyle para o árabe, contribuindo para o diálogo entre as culturas ocidental e árabe. Seus livros, como “Batalat al-Idiyal” (A Mulher Ideal) e  “Al-Musawat”   (Igualdade ), desafiavam as convenções da época, defendendo a emancipação feminina através da educação e da participação na vida pública. discutia a situação das mulheres árabes, já que conhecia tanto a realidade na Palestina, no Egito, quanto no Líbano. 

Além das traduções de autores do cânone ocidental, May Ziade  que travava no seu salão travava discussões em seu salão sobre os direitos da mulher e  apontava para a importância da educação delas e sua efetiva participação na vida pública, uma vez que criticava a alienação feminina em questões relativas ao universo político e à naturalização da dominação masculina. Ziade chamava a atenção para o fato de que   a situação das mulheres árabes, já que conhecia tanto a realidade na Palestina, no Egito, quanto no Líbano, mesmo as que tinham um elevado nível cultural, não conseguiam ter um pensamento crítico acerca do que viam. Ao mesmo também, não via que a ocidentalização fosse o caminho para a emancipação feminina, muito pelo contrário, acreditava que as questões femininas deveriam ser consideradas dentro da realidade social da sociedade oriental. Além disso, afirmava que a igualdade de direitos não precisaria sacrificar a feminilidade, não precisaria colocar as mulheres numa situação de “double bind”, como Bourdieu denomina a situação que as mulheres enfrentam quando chegam ao poder, “se atuam como homens, elas se expõem a perder os atributos obrigatórios da ‘feminilidade’ (…)”.

Audaciosa, May Ziade  levantava questões tidas como tabus em sua cultura, podemos afirmar que a autora realizava uma dupla revolução na medida em que debatia em seus textos temas relacionados à emancipação feminina como também os discutia em espaços antes ocupados apenas por homens. Não queremos dizer com isso que a autora produzisse uma literatura feminista, pois este conceito surgiria apenas nos anos de 1960, a partir dos movimentos feministas. O que se vê nesta intelectual é uma voz feminina, muitas vezes condenada ao silêncio, para falar de direitos da mulher numa sociedade envolvida por fortes dogmas religiosos tanto no âmbito do cristianismo quanto no islamismo. Esse tempo vivido por Ziade  representava um tempo de conflitos culturais, e ela faria de sua escrita um campo em que pudesse resolvê-los.

Pelo salão de May Ziadeh passavam intelectuais, muitas vezes de posicionamentos opostos, mas o grande mérito dele era a reunião dessas vozes plurais fossem para declamar poemas, fossem para debater algum novo tema. Era um espaço onde as vozes dissonantes, mesmo pertencentes a uma elite, poderiam ser ouvidas.

A Amizade Epistolar com Khalil Gibran

Um dos capítulos mais fascinantes da vida de May Ziade foi sua profunda amizade com o poeta libanês Khalil Gibran, autor de  O Profeta .  A partir de 1912 ela iniciaria uma vasta correspondência com Gibran. Quando o autor publica Asas Partidas,   ela enviou-lhe uma carta mostrando o quão profundamente estava comovida com o romance, uma vez que reconhecia nele o tema voltado para os direitos das mulheres, desde então manteriam contato por 19 anos, até a morte dele nos Estados Unidos.  Sem nunca se conheceram pessoalmente, trocariam uma intensa correspondência por mais de vinte anos, trocando cartas repletas de reflexões filosóficas, poesia e admiração mútua.  

Gibran via em May uma alma gêmea intelectual, e suas cartas revelam uma conexão que transcendia o físico. Ele a chamava de “May, minha querida irmã em pensamento e espírito“, enquanto ela admirava sua visão humanista. Essa relação, puramente intelectual e emocional, tornou-se um símbolo do poder das ideias e da palavra escrita.

Essas cartas que falavam de amor, da saudade do Líbano, da produção literária como O Profeta, sendo ela a sua grande interlocutora, ou ainda cartas envolvidas por sensibilidade, melancolia e desespero. Porém, a morte de Gibran, em 1931 a mergulharia numa profunda depressão, prolongada com a morte de seus pais

Seu Papel no pensamento  Feminino Árabe.

May Ziade foi uma das primeiras vozes a articular um  pensamento feminista árabe moderno, argumentando que a libertação das mulheres era essencial para o progresso da sociedade. Ela criticava o casamento forçado, a falta de acesso à educação e a subjugação feminina, defendendo que as mulheres deveriam ter autonomia intelectual e profissional. 

Em seus ensaios desafiava os dogmas religiosos e culturais que limitavam as mulheres, propondo uma reforma baseada na razão e na justiça. Sua abordagem era singular: sem rejeitar sua identidade árabe, ela articulava um feminismo enraizado na cultura local, mas aberto às ideias universais de igualdade. 

Legado e Reconhecimento

Como dito, a morte de Gibran e a de seus pais a mergulhariam numa profunda tristeza. Sem a “tutela” de um homem, como assim exigia a sociedade patriarcal, a prolongada depressão da autora fez com que seus parentes a internassem num sanatório. Essa internação abriu um debate público sobre transtornos mentais e a emancipação feminina, na medida em que essa decisão dos familiares de Ziade  ocorreu por ela não ter mais pais, não ser casada e não ter irmãos. Nesse sentido a sua biografia contribuía para desnudar a condição das mulheres árabes em situações como a dela, vítimas da violência patriarcal.

May após passar por várias internações, demonstrando boa saúde, tem alta em 1938. Retorna para o Cairo, decepcionada e questionadora, pois não via que sua produção tanto a literária quanto a não literária pouco tinha tido algum efeito pelas mulheres ou pela literatura árabe, e muito menos ela acreditava que um dia fosse reconhecida.

Apesar de enfrentar inúmeras adversidades — incluindo a perda de entes queridos, crises de saúde e até um período de internação forçada por familiares que contestavam sua independência —, a autora libanesa deixou um legado duradouro. Sua coragem ao desafiar normas de gênero inspirou gerações futuras de feministas árabes, como Nawal El Saadawi e Huda Shaarawi.  E ainda, 58 anos após sua morte, em 1999, foi homenageada pelo governo libanês, recebendo, postumamente, o título de personalidade do ano.

Hoje, May Ziade é celebrada como uma pioneira que uniu literatura, filosofia e ativismo, provando que as palavras podem ser instrumentos de transformação. No entanto, seu sonho em  ver os direitos da mulher sendo conquistados, ainda não foram plenamente realizados, muito ainda há de ser feito, tanto no ocidente quanto no oriente. A partir desse breve recorte vimos que May Ziade viveria  num jogo de paradoxos, pois através de sua participação na vida pública teve o mérito de romper com a imagem orientalista estereotipada do ocidente em relação à mulher árabe, mas não conseguiu  romper com a estrutura de patriarcal. Mesmo assim, sua vida e obra continuam a ressoar, lembrando-nos do poder das suas ideias.

 

O presente artigo é parte do capítulo Recortes Femininos do Mundo Árabe, in Ahla Wa Sahla – Uma introdução aos mundos árabes,org. Karime Cheiato.  Editora Luta Capital, 2022.
Bourdieu, Pierre. A Dominação Masculina: A Condição Feminina e a Violência Simbólica. Trad. Maria Helene Kühner. 11 ed. São Paulo: Bertrand do Brasil. 2012.
ZIADE May. Kalimat wa Isharat 1. Beirute, 1981
_____________. Kalimat wa Isharat 2. Beirute, 1983.
Bourdieu, 2012, p.84
Blue Flames Edited by Salma Haffar al-Kuzbari and Suheil Badi Bushrui, this book contains the letters Gibran wrote to Ziadah. 
 
Escritora, dramaturga, Doutorado em Teoria e História Literária pela Unicamp. Professora colaboradora do PPGL da UFF. Profa. visitante PUC-PR.. Membro da Academia Líbano Brasileira de Letras, Artes e Ciência, cadeira número 25, patrono Salim Miguel.

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