Peço licença para, nessa estreia de “Libanus”, jogar um pouco de luz sobre a obra e a vida de meu pai, Salim Miguel. Entre os motivos, o fato de entrarmos na contagem regressiva para o seu centenário – ele nasceu em 30 de janeiro de 1924, no vilarejo de Kfarsaroun, no norte do Líbano.
Salim desembarcou no porto do Rio de Janeiro aos 3 anos, junto dos pais, Tamina e Youssef, de duas irmãs menores, Fadua e Hend, e um tio materno, Taufic. Chegada que inspirou seu título mais lido e premiado, “Nur na escuridão” (Topbooks, 1999 / Record, 2008), no qual, aproveitando um livro de memórias de seu pai que mandou traduzir do árabe para o português, destrincha ficcionalmente o processo de adaptação de uma família estrangeira ao Brasil.
Era noite na Praça Mauá, no verão de 1927, quando a família passou pelo departamento de imigração. Ao receber o endereço de parentes anotado num pedaço de papel, o chofer do táxi acendeu um fósforo: “Preciso de Luz!“
E assim os recém chegados aprenderam a primeira palavra em português, além das protocolares “bom dia, boa noite, obrigado, etc…”. A partir daí, os leitores de “Nur….” acompanham como o novo idioma e os novos costumes, aos poucos, vão se misturando à cultura árabe-libanesa.
Tamina e Youssef não se adaptaram ao calor do Estado do Rio, mesmo que tenham trocado Magé, a primeira parada, abrigados por alguns parentes, por Teresópolis. Após procurar opções no mapa, escolheram Santa Catarina, indo viver em outra região serrana, nos arredores de Florianópolis. Até os 7 anos, Salim lia e falava árabe em casa, enquanto era alfabetizado em alemão, já que não havia opção de escola “brasileira” no lugarejo.
Só quando a família se mudou para Biguaçu, município colado a Florianópolis, que aprendeu a ler e escrever em português
Ainda em Biguaçu, no início da adolescência, descobriu a literatura, trocando a ajuda no pequeno comércio do pai pelo trabalho de atendente da única livraria da cidade, cujo dono era um poeta cego.
Pelo combinado, também tinha a tarefa de ler para o patrão. Deliciosa tarefa, que o garoto alternava com atividades igualmente prazeirosas como jogar (muito bem) futebol e nadar no Rio Biguaçu (onde quase se afogou).
Nos anos 1940, quando a família se muda para a capital e o negócio de Seu Miguel (como passou a ser conhecido Youssef/José) cresce, Salim já tinha dito ao pai que iria se tornar um escritor. “Vai ser difícil, mas, respeito”, foi a resposta.
Após brigar com um professor e abandonar o Colegial (o que hoje equivale ao Ensino Médio), fez o exame de Madureza. Não pensou em faculdade, preferindo trabalhar no censo do IBGE, e a partir dessa experiência escrever seu primeiro livro, “Velhice e outros contos” (1951).
A essa altura, junto a outros jovens catarinenses, incluindo sua companheira de toda a vida, a também escritora (advogada, professora de História) Eglê Malheiros, Salim já era um dos líderes do Grupo Sul, que sacudiu a então rala vida cultural de Florianópolis.
Entre suas atividades, exposições de arte moderna, montagens de peças contemporâneas e a Revista “Sul”, que circulou entre 1948 e 1957. Antes de os termos existirem, o grupo funcionou como um “coletivo” de intelectuais, atuando em “rede”, com colaboradores e correspondentes espalhados por diversas cidades do Brasil e até do mundo (entre outras, Lisboa, Montevideo, Buenos Aires, Luanda e Nova York).
Dividido entre o jornalismo (para pagar as contas) e a literatura, Salim conhece em congressos e mantêm correspondência com escritores consagrados como Graciliano Ramos, Jorge Amado, Marques Rebelo e também muitos novos como ele.
Continuou um ávido leitor e chegou a ser sócio de uma livraria. Por pouco tempo, já que mais
comprava do que vendia – quase sempre que um cliente encomendava algum título que não conhecia, curioso, pedia mais um. No fim dos anos 1950, encantou-se com a nova literatura latino-americana, bem antes de a obra de Borges, Cortazar, Rulfo, Garcia Marques, Cabrera Infante, Vargas Llosa ganhar o mundo.
Em 1964, o golpe civil-militar que derrubou o presidente João Goulart abalou a vida familiar. Acusados de subversão, Salim e Eglê foram presos.
Os então quatro filhos (o quinto nasceu já no Rio, em 1967) ficaram literalmente sem pai nem mãe por algumas semanas. A opção foi migrar para o Rio de Janeiro, onde Salim se dividiu entre dois empregos como jornalista e Eglê, proibida de dar aula, ajudou no orçamento como tradutora de alemão, francês e inglês. Contratados por Antônio Houaiss (outro descendente de libaneses e patrono da Academia Líbano-Brasileira) os dois ainda colaboraram nos verbetes sobre literatura de enciclopédias coordenadas pelo filólogo, escritor, diplomata e ministro da Cultura no governo Itamar.
Até 1979, quando voltam para Florianópolis com dois dos cinco filhos, a literatura continuou sendo o foco principal, e prosseguiu até o fim da vida, em 2016. Na temporada carioca, lançou novos livros e mais uma revista literária, “Ficção” (que editou com Eglê, o casal Laura e Cícero Sandroni e o escritor e crítico Fausto Cunha), e também trabalhou como roteirista de cinema.
De alguma forma, sem opção, foi um pai ausente. Saía de casa por volta das 8h para o trabalho na Editora Bloch (das revistas “Manchete”, “Fatos & Fotos” e “Tendência”, algumas das quais atuou) e depois, no fim da tarde, prosseguia até as 23h como redator na Agência Nacional. Desse período no Rio, as lembranças mais fortes que ficam de Salim são, nos fins de semana, escondido atrás de um livro novo ou batucando em sua máquina de escrever. A criação dos filhos e a organização da casa ficavam com Eglê.
Ausente mas, até hoje, quase sete anos após sua morte, muito presente através da obra e nas lembranças dos muitos amigos que deixou. Entre as duas dezenas de livros, além de “Nur…”, destacam-se “A morte do tenente e outras mortes” (1978), “A voz submersa” (1984), “Primeiro de Abril: Narrativas da cadeira” (1994), “As confissões prematuras” (1998), “Jornada com Rupert” (2008) e “Reinvenção da infância” (2011). Eles mantêm Salim Miguel entre nós.
Neles, quase sempre, vida e ficção se misturam. O menino que despertou para a literatura como leitor de um poeta cego, foi perdendo a visão na última década e meia. Felizmente, teve quem (entre estudantes contratados e um neto) lesse e também digitasse seus últimos textos.
De alguma forma, o Líbano e a cultura árabe em geral dão as caras em sua obra. As narrativas de “As mil e uma noites”, que sempre leu e releu, estavam entre as referências fortes, em meio a William Faulkner, Honoré Balzac, Graciliano Ramos, Juan Rulfo, Thomas Mann, Lima Barreto, José Saramago, James Joyce, Fernando Pessoa, Cruz e Souza, estes, alguns dos muitos preferidos do homem-livro que foi Salim Miguel.