Loqma (لقمة) em árabe significa literalmente “bocado” ou “pedaço de comida”. É uma palavra usada para descrever uma porção que cabe na boca, simbolizando o ato de partilhar, saborear e nutrir. O termo também carrega um significado cultural profundo, representando a simplicidade e a generosidade associadas à tradição culinária árabe, onde o ato de dividir a comida reflete hospitalidade e laços comunitários.
A relação do libanês com a culinária é profunda, quase visceral. Desde os ingredientes até a mesa, a cozinha é um lugar de conexão emocional, cultural e social que sempre leva à tanjara (panela). No Líbano, o dia começa invariavelmente com a mesma pergunta, explícita ou implícita: “Chou Tabkhin el Yaoum?” (“O que tem de almoço hoje?”).
Nas aldeias e vilarejos, a tanjara simboliza mais do que o ato de cozinhar; ela representa a arte de criar alimentos, onde o equilíbrio entre ternura e ódio, tempero e veneno, é cuidadosamente mantido. Cozinhar, no país dos cedros, é uma expressão de cuidado e, ao mesmo tempo, um reflexo das complexidades humanas, um ato que revela modos de amar e de coexistir.
Transformações na Identidade Culinária
Antropólogos apontam que a identidade culinária de um país se consolida ao longo do tempo, influenciada pelas interações culturais. No passado, essas trocas eram lentas devido ao isolamento geográfico e à comunicação limitada. Com a revolução tecnológica e a globalização, no entanto, o ritmo dessas transformações acelerou significativamente, e a culinária libanesa não foi exceção.
Embora algumas receitas do repertório nacional tenham raízes bizantinas e otomanas, uma parte substancial da gastronomia libanesa é autêntica e exclusivamente local. Essa herança foi impactada pela abertura cultural, que trouxe mudanças positivas, mas também desafiadoras. No entanto, essas influências não se espalharam uniformemente por todo o Líbano. Enquanto as regiões urbanas abraçaram novidades, o interior manteve viva a tradição, resistindo a tendências externas e preservando práticas culinárias ancestrais.
Preservação em Meio às Mudanças
Mídias especializadas e escolas profissionalizantes desempenham um papel essencial na manutenção da identidade culinária libanesa. Por meio de programas e currículos voltados para a gastronomia tradicional, essas instituições asseguram que técnicas e valores locais sejam transmitidos às novas gerações.
Ainda assim, a coexistência de uma culinária tradicional e outra influenciada por fatores externos traz desafios. O risco de marginalização e eventual extinção de pratos típicos é uma realidade da modernidade, onde práticas culturais podem ser gradualmente substituídas.
O fenômeno dos influencers gastronômicos é outro aspecto contemporâneo que merece reflexão. Embora promovam a culinária libanesa globalmente, frequentemente reduzem sua complexidade cultural, simplificando-a ou até distorcendo suas origens. Isso levanta questões sobre autenticidade e o verdadeiro potencial dessa nova forma de representação.
A Voz da Tradição
Entre as memórias mais queridas dos libaneses está o som da voz de suas avós, levantando-se ao amanhecer para preparar a comida. Uma cena que permanece viva no imaginário coletivo: a avó vociferando para sua ajudante cingalesa, em um inglês improvisado: “Put the tanjara on the fire!” (em árabe: Hiti el tanjara ala ennar. Em português: “Coloque a panela no fogo.”).
A Panela que Une
Se para cada tanjara existe uma tampa, a panela libanesa simboliza algo maior: igualdade à mesa. Ela acolhe a todos, sem distinções, proporcionando um espaço de convivência democrática. A única exclusão é a autoimposta – daqueles que buscam destacar-se a qualquer custo, rompendo a harmonia coletiva. Estes, afastando-se do espírito acolhedor da tanjara, tornam-se simples frigideiras melancólicas, à margem da mesa generosa e inclusiva que define a essência da culinária libanesa.
A tanjara não é apenas uma panela. É um símbolo de tradição, de memória e de união – e enquanto estiver no fogo, continuará a alimentar não apenas corpos, mas também corações e histórias.
© Revista Libanus
fotos: pinterest






3 Comments
Gostei do artigo que me trousse doces lembranças das nossas tradições em volta da mesa.
A tanjara era chamada de “helleh” no tempo da minha vó porque era feita de barro e o fogão era à lenha.
Eles Eram pobres mas nunca faltou uma boa comida servida numa bandeja de palha redonda feita à mão.
Cada “lokmeh” tinha um sabor afetivo porque todos os ingredientes nela contidos foram feitos com muito amor pelos mais velhos.
As tradições continuem sendo praticados mas o sabor do “Lokmeh” mudou.
Rezkallah … saudades.
Obrigado pels sua leitura, Marie, e pelas lindas lembranças.
Schukran pelas lindas lembranças que Insha Allah enriqueça cada vez mais a cultura Libanesa.